spoiler visualizarRonaldo Thomé 28/05/2021
Estados Sem Solução
Esse foi um grande desafio! Livro complexo, cheio de sutilezas, ironias e uma escrita que não segue uma rota tradicional. É meu primeiro livro do autor Michel Laub e, aparentemente, seu trablaho é forte, viril, intenso, ainda que toque em assuntos delicados com muita sutileza (às vezes, porque em outras)...
A primeira grade dificuldade com a obra é entender o desafio proposto: o livro se apresenta como um longo relato dos bastidores de um documentário, onde os dois personagens principais são Raquel, mulher, artista e obesa, e Alexandre, empresário do ramo de esportes e vinculado à área de auto ajuda e espiritualidade. No meio, temos Brenda, a documentarista que perdeu o marido num assalto, e percorre o mundo afim de expor a violência e a luta pelos direitos dos cidadãos.
O que poderia dar errado...? Bem, se você for como Michel Laub, tudo. À medida que as entrevistas avançam, pequenas surpresas e segredos sórdidos aparecem. Descobrimos que Alexandre e Raquel são irmãos; que ambos se odeiam; os dois se sentem injustiçados um pelo outro, desde muitos anos. Raquel é performer e trabalha na área do entretenimento adulto; seu trabalho consiste em fazer reflexões baseados na relação entre sexualidade e violência. Alexandre é metódico, silencioso; tem todo um discurso de espiritualidade, mas não se furta a acessos de raiva ao comentar sobre o governo e pautas progressistas.
Dois acontecimentos servem de catalisador (e de plot twist) dentro da trama. O primeiro é a morte da mãe de ambos, que resulta num longo processo por parte de Alexandre. O outro é uma palestra de Raquel, que termina numa violenta surra sofrida por ela, num hotel em São Paulo, causada por um dos seguidores do irmão.
São dois personagens muito carregados de ira e de ressentimentos, o que torna o livro pesado de acompanhar; além disso, a trama tem quebra de cronologia, algo semelhante ao que acontece em filmes como 21 Gramas, por exemplo. À medida que você lê, no entanto, algumas coisas vão ficando evidentes.
Por exemplo: Alexandre critica e julga com frequência a profissão da irmã, e apesar de todo seu discurso de perdão, de reconciliação, ele em todos os momentos chega a dirigir ofensas, de modo incômodo - chegando a falar até do cheiro dela durante o velório da mãe. Raquel, em uma de suas performances, criticou diretamente o trabalho do irmão, tendo sida espancada depois com o mesmo objeto que um homem usa durante esse vídeo. Ela chama o irmão de miliciano frequentemente. O que o autor quis dizer com isso, aparentemente: ele nos oferece uma analogia do Brasil de hoje, polarizado, violento e com lados por vezes agressivos - mas em que um lado tem causas profundas para sua ação decorrentes do outro.
A personagem de Brenda, que tenta se colocar no meio, como imparcial, acaba sendo arrastada nesse turbilhão, o que a leva a ter violentas discussões com os dois - ela talvez seja a visão do autor sobre uma pessoa de fora disso. Um leitor mais casual provavelmente terá resistência a esse modo de narrar e escrever, que é muito simbólico, e ao mesmo tempo cru e agressivo. Mas não deixa de ser uma experiência imersiva, um grande quebra cabeças, onde a imagem formada é tão necessária quanto indigesta.
Ainda em tempo: parabéns ao Michel Laub por ter criado o personagem mais repulsivo e escroto que já tive a experiência de conhecer na literatura nesses últimos anos - só um escritor de grande talento é capaz de fazer isso. Uma legítima personalidade vilanesca. A obra vai dizer qual esse personagem é...
Indicado para: ver como a polarização que enfrentamos tem raízes muito mais profundas do que parece, e às vezes é necessário tomar uma posição, tanto quanto saber o momento de ser imparcial.
Nota: 8,5 de 10,0.