jota 08/12/2020ÓTIMO (contos pra lá de interessantes: insólitos, fantásticos, bem-humorados)Não li tantos livros assim de Moacyr Scliar (1937-2011), mas me lembro de ter apreciado os romances A Majestade do Xingu e A Mulher Que Escreveu a Bíblia, além da novela Max e os Felinos, os três muito bons. Li ainda Leituras de Escritor, volume em que ele apenas organizou a coletânea de contos de autores de diversos países e épocas, escolhendo narrativas bastante interessantes. E agora fico agradavelmente surpreso com Os Melhores Contos de sua autoria, uma seleção de textos feita por Regina Zilbermann ainda na década de 1980, um título que não engana o leitor.
São quarenta e três histórias que misturam o real, o fantástico e o social de modo muito bem-humorado, em textos de poucas páginas, quase sempre três ou menos. Exceção é o último conto, o delicioso Os Contistas, que é quase uma novela, com mais de trinta páginas cheias de anedotas e casos curiosos envolvendo escritores. Em que o assunto, claro, é literatura e que, no final, nos deixa a impressão de que todos os gaúchos são metidos a contadores de histórias, quer dizer, contistas, tão engraçado e apropriado é o que lemos ali. Eis um trecho dessa história escrita há várias décadas:
“Um amigo do contista Emílio enviou-lhe de Estocolmo o seguinte telegrama em sueco: “Comunicamos escolha sua pessoa Prêmio Nobel de Literatura. Esteja Estocolmo dia dez.” Quando lhe traduziram o telegrama, o contista Emílio riu muito, depois passou por momentos de dúvida cruel. Na noite de nove para dez não dormiu. No dia seguinte anunciaram o vencedor do Nobel, e não era o contista Emílio. É tudo uma panelinha, disse ele, despeitado.” Como não achar graça nisso? Ou em O Velho Marx, conto onde o autor de O Capital, desiludido da vida, resolve testar suas teorias num novo país e escolhe o Brasil para morar.
“Preciso fazer um estudo sobre o papel do proletariado nos países atrasados”, pensa Marx e então se muda com a família para Porto Alegre e vai procurar trabalho na cidade. Consegue colocação numa marcenaria, de propriedade de um velho judeu. Bastante insólito, não? A capital do Rio Grande do Sul (e o próprio estado) é o cenário de diversos contos. Outro fato é que muitos deles têm personagens e temas judaicos: como se sabe, Scliar descende de judeus e não deixa a coisa barata nem para seus conterrâneos. Da mesma forma, há várias histórias que têm a ver com sua profissão.
Scliar era médico e as histórias envolvendo medicina trazem inacreditáveis doenças, cirurgias e amputações. Por outro lado, Scliar é bastante preciso no uso de termos técnicos, protocolos e afazeres da profissão. Assim é Pequena História de Um Cadáver, conforme destaca Zilbermann: “Narrando o trabalho de alunos de Medicina, o escritor opta por apresentá-los sob a ótica de Maria, o cadáver que os jovens estudam. Escorrega, assim, para o fantástico no que diz respeito ao foco escolhido; mas não perde de vista o realismo das cenas, quando descreve as operações procedidas pelos estudantes.”
O insólito com um pé na realidade está presente em quase todos os contos, mas Scliar também carrega nas tintas da crueldade, violência e erotismo. Animais, pessoas e coisas vivem situações fantásticas, sobrenaturais, fora do comum: tudo isso faz com que, a cada conto, admiremos mais a imaginação e a criatividade do autor gaúcho. Quer dizer, brasileiro, universal. Então eu poderia destacar outros ótimos contos, fazer um pequeno resumo de cada um, mas eles seriam muitos, quase todos, porque os medianos são poucos, cinco ou seis apenas e felizmente não há nenhuma narrativa ruim, desinteressante.
Quem aprecia boas histórias curtas, ótimas, na verdade, vai se sentir recompensado com o livro, vai se divertir bastante com Os Melhores Contos de Moacyr Scliar, tenho certeza. Obra que recomendo com entusiasmo para leitores de bem com a vida. Se bem que com o desgoverno que temos e a pandemia que vivemos não esteja muito fácil tocar a coisa pra frente nos dias de hoje. De qualquer maneira, Scliar torna essa tarefa um pouco mais leve...
Lido entre 02 e 07/12/2020.