"Apesar da sombra que o fim de tarde espalhava, percebia-se o sangue a manchar as partes brancas da camisa entreaberta na altura do peito. Apoiado o corpo num tronco de árvore antiga, o rosto recebia ainda algum fulgor de claridade esmaecida. Os olhos estavam fechados numa placidez estranha para um ferido; os cabelos esparsos na fronte e a barba ainda tímida acentuavam a palidez do rapaz cuja dor não se evidenciava, senão no vermelho morno do ferimento. A mão clara sobre um casaco escuro, como o rosto e a camisa, era o ponto de luz naquela cena em que a morte parecia chegar numa quase ternura, sem ruídos: como um líquido espesso a tomar aos poucos, mas infalivelmente, uma folha de papel. Como será perder-se com as luzes frouxas do dia?".
Uma leitura na chuva, além de brincar com metalinguagem, procura desenhar a largos traços duas discussões antigas e sempre renovadas: por um lado, o dilema do escritor diante da (in)utilidade de seu trabalho artístico com as palavras e a representação do mundo ao seu redor, sobretudo numa sociedade destituída de uma cultura forte e contínua de incentivo à leitura e de compreensão do que seja e enseje o literário; por outro, o embaraço do leitor diante das representações ficcionais de um texto verbal artístico, em especial quando ele serve de referência à sua produção.
O romance apresenta uma discussão sobre a produção, a leitura e a recepção da obra literária. O argumento central se desenvolve a partir do efeito da ficcionalização da relação entre um escritor e um amigo na "vida real", o que leva o amigo a uma crise de identidade e de valores éticos. Como a história principal se desenvolve concatenada a outras de “autoria” do escritor-personagem, as ficções se entrelaçam e se confundem, instigando o leitor a desvendar todos os significados ali propostos, provocando – sobretudo após o final angustiante – uma séria reflexão sobre o papel da arte.
Ficção / Literatura Brasileira / Romance