Desaparecida em plena criatividade, Clarice Lispector abriu novos caminhos para a literatura brasileira, no momento em que predominavam o documentarismo e o regionalismo. Elaborou uma obra em que sobressaem a densidade introspectiva e o processo de desestruturação da ficção, pois o mundo de hoje não pode ser mais representado através de recursos tradicionais. Os romances Clarice Lispector estão incrustados na cidade e no tempo presente, como um fragmento da vida urbana. A ação exterior é abolida em favor do momento que se arrasta e da sondagem de caracteres e consciências surpreendidas no fluxo de idéias.
Um Sopro de Vida, obra póstuma, foi escrita em três anos. Pode-se considerá-la como o diário de uma criação, onde foram anotados impressões e definições. A própria autora classificou-o de "não-memórias". Dois personagens contrapõem-se e complementam-se: o autor e sua criatura Ângela, um ser forjado pela palavra e que escreve sem saber o que é ficção. Neste romance, Clarice reitera suas obsessões numa linguagem rica em imagens, fruto da dinamização de seu universo interior. Cria assim um mundo poético paralelo ao real, em que tenta submeter a intuição ao controle da razão. Quer ser livre para sentir e raciocinar, numa fusão de "corpo e alma". Parte à procura de novas realidades, diante do sem-sentido da existência. Num procedimento que lhe é próprio, confere novos significados a forma clicherizada para apagar qualquer resquício de hábitos ou cacoetes.
A ironia da narradora convida o leitor, como cúmplice e aliado, a participar de um código comum em que as palavras sugerem e a linguagem se torna lúdica. Realidade e imaginação se complementam num mundo mágico, relacionando o ato de escrever e o imaginário num mergulho introspectivo. O núcleo gerador da obra é, afinal de contas, o questionamento do ato de escrever.
Literatura Brasileira / Ficção / Romance