O percurso filosófico de Paul Ricoeur, consagrado em grande parte à hermenêutica, da qual ele se tornou um dos principais expoentes na França, passa pela tradução de Husserl, apresentada como um dos requisitos necessários à obtenção do título de “Doutor de Estado”. Apesar dessa importante experiência como tradutor, que marca o início de sua carreira universitária, o tema da tradução surge em sua obra tardia. A reflexão sobre o ato de traduzir aparece no estudo sobre a Bíblia, no qual ele dedica um importante capítulo à relação entre interpretação e tradução,1 e nos três textos aqui reunidos, redigidos no final dos anos 1990 em contextos diversos e publicados pela primeira vez em livro um ano antes da morte do autor. A importância e a coerência deste conjunto estão no deslocamento operado na própria questão sobre a tradução. Ricoeur procura substituir o clássico dilema do intraduzível e do traduzível por uma alternativa prática: fidelidade versus traição. Nesse sentido, ele deixa de lado uma certa filosofia da tradução que oscila entre a tese de sua impossibilidade teórica e a constatação de sua prática efetiva, para pensá-la como elaboração de “correspondências sem adequação”, de “equivalências sem identidade”, ou seja, como uma resposta
construtiva ao desafio representado pela diversidade das línguas. Não é por acaso que o título do primeiro texto faz menção a esse tipo de felicidade pontual que a língua francesa designa por bonheur: “a hora boa”, “o momento feliz”.
A felicidade momentânea, historicamente circunscrita, de traduzir, implica a aceitação de uma perda: o abandono do sonho de tradução perfeita, de um absoluto linguístico que aboliria a diferença entre o próprio e o estrangeiro. Deixando de lado essa aspiração irrealizável, o tradutor encontra sua
recompensa, seu ganho, no próprio “reconhecimento do estatuto incontornável da dialogicidade do ato de traduzir como horizonte razoável do desejo de traduzir”.2 Assim, ele deve visar apenas uma equivalência presumida que não se funda sobre nenhuma identidade de sentido demonstrável,
ou seja, uma correspondência construída no ato mesmo de traduzir e cuja verificação ou refutação implica o trabalho de retradução que inscreve o texto traduzido numa perspectiva
histórica.
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