Paulo 10/03/2019
Flinch é uma obra muito complicada para se comentar a respeito. Claramente o objetivo dela era tentar replicar parte do legado deixado por revistas clássicas de terror como a Creepy e a Eerie. Foram lugares onde gênios como Richard Corben fizeram fama. O problema é que mesmo se tratando de um espaço como o selo Vertigo, da DC, há muitos complicadores para dar liberdade aos escritores. O resultado é uma revista caleidoscópica por demais com apenas algumas histórias mais memoráveis. E a maior parte das histórias são de figuras que já sabemos que vão entregar ótimas narrativas.
A edição da Panini é bem simples, em capa cartonada. Para uma revista tão alternativa como essa se tornar mais vendável, deveria ter algum material extra no final. Um material produzido por aqui que destacasse o legado das revistas de terror ou até falasse de caras como o Richard Corben ou o Joe R. Lansdale. É complicado jogar uma revista tão mix como essa nas bancas e esperar que ela se venda sozinha. Comprei porque era uma semana parada e acabei pegando por falta de opção. Salvo algumas histórias bem legais que eu vou comentar, é um mix completamente esquecível.
É óbvio que eu vou falar de Garota Lupina Devora com roteiros de Bruce Jones e a arte do incomparável Richard Corben. Acho que poucos artistas possuem uma mente tão deturpada para o terror como o Corben. Cada vez que eu leio algo dele sinto algo de clássico nas suas páginas. Ele consegue dar personalidade própria à sua arte. E o Bruce Jones tem um roteiro excelente aonde aproveitar a arte dele. A história se passa em um vilarejo afastado onde os locais mantém um circo de horrores. Um padre vai até lá para investigar alguns acontecimentos estranhos e ao adentrar no circo não fica lá muito impressionado com o que vê. Até que o dono do circo cisma para que o padre vá ver uma estranha garota que ele mantém trancada em uma espécie de anfiteatro. A garota é de uma beleza exótica e maravilhosa misturando uma parte lupina com uma voluptuosa ruiva que parece encantar o padre. A partir daí a história começa a dar uma guinada para o bizarro com o coroinha do padre fazendo uma revelação estarrecedora. Aqui temos todo o terror e o estranhamento típicos de boas histórias de terror. O trabalho com o lado obscuro do ser humano é inacreditável e tirando a ideia da garota lobo, a história é muito pé no chão. É realmente tudo o que tem de podre no coração humano.
Garth Ennis é um autor com a mente muito perturbada. Só pode ser. Só ele para conseguir criar algo tão bizarro a partir de Titanic. Satanic é uma clara paródia, com a arte do Kieron Dwyer e nos coloca diante de um grupo de satanistas que acabaram por ocasionar o naufrágio do famoso navio. Enquanto eles realizavam seus rituais macabros e suas orgias sem fim, algo dá errado que leva o navio a afundar. O autor reconta a história em moldes macabros e somente no final descobrimos por que disseram que o navio tinha fundado por causa de um iceberg. Tudo o que podemos esperar do famoso autor de Preacher está ali: personagens bizarros, narrativa com toques de ironia macabra e o humor negro tradicional dele. Um prato cheio.
Saímos do humor negro do Ennis para logo a seguir termos a narrativa poética do mestre Kent Williams. Ele nos coloca diante do desaparecimento de uma mulher e vai contando de trás para a frente o que realmente aconteceu. A arte dele tem um estilo bem peculiar e próprio que somente o Williams é capaz de entregar. Além disso, ele foi o responsável pelos roteiros. O Dom da Amizade faz a gente ter lampejos desse estilo de narrativa que eu li em Blood, publicado pelo Pipoca & Nanquim. Gosto de como o Kent transforma as páginas em aquarelas onde letras e desenhos se mesclam para formar algo com múltiplas interpretações. Será que a pessoa que vive ao nosso lado é tão inocente como achamos ser? E se ela foi a responsável por aquilo que nos destruiu completamente?
Impossível não falar de Parada, com roteiros de Devin Grayson e a arte do incrível Phil Jimenez. Ele nos coloca diante de um pai revoltado porque o filho o obriga a levá-lo em uma parada gay. O pai tenta fazer o filho desistir desta "vida". Logo logo percebemos que ele é um hipócrita e que já teve relacionamentos homossexuais. Mas, para agradar uma sociedade que exige outra postura dele, acabou enterrando sua opção sexual em um armário e fingindo ser quem ele não é. A narrativa é muito simbólica mostrando como essa couraça que ele criou vai se despedaçando pouco a pouco diante das pessoas com quem ele se envolveu. As hipocrisias vão se somando uma a uma até que o personagem é despido dela. O que sobra você vai conferir na narrativa. Uma ótima metáfora sobre o quanto buscamos agradar algo que nem sempre queremos. Trancar nosso verdadeiro eu dentro de um baú e trancar a chave.
Como podem ver, é até possível encontrar boas histórias no meio dessa coletânea. Mas, são muito poucas para todas as outras que você não é capaz de se empolgar. Das vinte e quatro histórias que tem nesse primeiro volume, eu gostei de umas 5 ou 6. É muito pouco. E a qualidade da arte é bem questionável em algumas delas. Para mim, não vale a pena eu indicar a menos que vocês sejam fãs de algum dos roteiristas ou artistas da coletânea e desejam de todas as formas ler o material aqui. No mais, passem longe.
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