Paulo 25/06/2023
Esta é a última edição desta coleção que se concentrava na função de George Perez como roteirista e desenhista da revista mensal da Mulher-Maravilha. Perez ainda continua por alguns anos como roteirista das histórias da personagem. Isso fornece a este volume um sabor meio azedo. Por outro lado, quem acompanha a história da personagem na DC sabe que sua revista vai ser vítima de artistas bastante inconstantes e o roteiro do Perez também possui seus altos e baixos. Mas, considero bastante complicado encerrar a coleção neste volume, porque a história ficou incompleta. Não há exatamente uma resolução de alguns problemas, com vários ganchos de histórias do Perez que serão abordados em volumes posteriores. Nos EUA, os encadernados do Perez ainda duram vários volumes (sendo que são 3 omnibus). Na minha visão acho que não custaria publicar mais uns dois ou três volumes apenas para finalizar as histórias principais deixadas pelo Perez.
Não curti tanto a arte do Perez nesse volume. Achei ela bem contida e isso porque as histórias eram bastante reflexivas. Tem algumas cenas bem icônicas como a Diana falando na ONU ou o momento da votação em Themyscira. Não sei se Perez estava com um volume de trabalho grande demais para acompanhar, mas fato é que essa é a edição mais fraca do Perez como artista. Apesar de que qualquer coisa que o Perez faça cansado é duzentas vezes melhor do que a média do que outros artistas fazem. Mas, a barra que ele colocou para ele mesmo é alta demais. Contudo, preciso destacar o Anual 1 da Mulher-Maravilha que está contido neste volume. Imaginem vocês reunir Arthur Adams, Curt Swann, Brian Bolland e John Bolton em uma mesma edição? Pois é. O nível desse anual é altíssimo. A arte dessa edição está em outro patamar. Fico pensando em o quanto os anuais de hoje são apenas para pegar dinheiro de leitor e o quanto nas décadas de 80 e 90 eram edições realmente especiais. Não sei nem dizer de qual artista gostei mais porque todos estão sensacionais nesta edição. A ideia deste anual é contar pequenas histórias durante a estadia da família Kapatelis em Themyscira. Então, cada artista ficou com 4 a 6 páginas para si. Confesso que a parte do John Bolton foi a que mais me agradou porque a arte dele me fez remeter imediatamente ao Hal Foster. E não sei se a ideia do Bolton foi a de emular uma tirinha do Príncipe Valente porque a estética é muito parecida. Mesmo o design dos personagens é semelhante.
Não posso deixar de comentar também sobre a estética da primeira história que trata da investigação da morte de Myndi Mayer. Perez inovou ao mesclar um esquema de ilustrações com textos e quadrinhos na forma tradicional. O resultado ficou bem legal e sai do lugar comum das edições normais. A quadrinização desta edição em particular está bem legal, mas é uma edição bastante carregada de textos. A propósito: o Anual 1 também é bem carregado de textos. Perez brilha quando o roteiro dele o coloca em posição para imaginar cenários bem fantasiosos. Os capítulos que se passam em Themyscira são lindíssimos, com ele usando uma arquitetura nas construções bem fiel às construções helênicas da Antiguidade. O próprio palácio da rainha Hipólita me fez imaginar imediatamente a acrópole ateniense. As duas últimas edições estão bem legais no quesito ação. Perez brinca um pouco com aquele estilo cósmico de desenhar cenas de ação com personagens jogando raios para todos os lados e aquelas cenas que parecem saídas de Crise nas Infinitas Terras. Mas, é aquilo: do Perez a gente sempre espera mais. Porque sabemos o quanto ele pode entregar.
Falando um pouco dos temas nesta edição, não tem como passar em branco a edição da morte da Myndi. A personagem é bastante interessante e ganhou ainda mais camadas aqui. Através da leitura de seu testamento, conhecemos sua história e sua ascensão até chegar à sua posição de poder. Myndi é uma mulher com suas qualidades e defeitos e para se tornar o que ela era, precisou engolir muitos sapos. Essa é uma edição que discute empoderamento feminino em um mundo marcado pela dominação do homem branco cis. Myndi vem de uma família tradicional e que seu comportamento não aberto à submissão despertou a ira de seus familiares. Myndi precisou criar uma casca em torno de si, parecer forte quando tudo o que acontecia ao seu redor a abalava profundamente. Ela ter caído do jeito que aconteceu foi um reflexo de uma enorme pressão em suas costas. A história dela é a história de várias mulheres bem sucedidas que precisam se tornar duras e poderosas para vencerem em seus campos. Diana fica triste por entender tarde demais o que de fato aconteceu e perceber que ela não foi capaz de oferecer o suporte que Myndi precisava. O que ficou nas entrelinhas é que Myndi acabou se inspirando em Diana de forma indireta. Não pela beleza escultural de uma mulher que é um símbolo, mas pelos valores inocentes que ela trazia dentro de si.
O segundo grande acontecimento deste volume é a votação em Themyscira pela abertura da ilha às pessoas do mundo do patriarcado. Um momento chave para a história da ilha e que envolve sentimentos bastante divididos. Embora a gente saiba que a ilha vai se abrir, é interessante perceber o quanto as personagens não tem uma certeza total sobre a necessidade ou não de realizar esse intercâmbio. Por mais que Diana tenha boas intenções e saiba que isso é necessário, lá no fundo ela se preocupa pelo que ela viu acontecer no mundo fora da ilha. Esse é um tema que vai tomar as próximas edições da revista com as amazonas buscando entender qual é o seu lugar no mundo. Há o confronto de ideias entre Hipólita e Helena muito por conta do que aconteceu no passado com Héracles e seus companheiros. Mesmo que Héracles tenha sido perdoado e se tornou o amado de Hipólita, a ferida continua presente ali. O medo de elas sofrerem algum tipo de violência está presente em suas decisões. Independente do que Diana ou Hipólita digam, o fato aconteceu e Diana não faz ideia do impacto disso na vivência destas mulheres porque ela não passou por esse momento tão trágico.
A migração cósmica também é um assunto importante que vai levar a uma mudança no status quo do universo DC. Com o Olimpo destruído por Darkseid no volume anterior, os deuses perceberam que não era mais possível viver naquela montanha de rocha mística. A pústula deixada por Darkseid ainda permanece e poderia afetar negativamente os poderes olimpianos. É então que eles decidem partir e recriar a terra sagrada em outro local. Isso envolve uma escolha difícil que é o de deixar as amazonas sozinhas por algum tempo. É o tipo de coisa que vai testar a fé das themyscirianas que vão se ver sem o alvo de suas preces por algum tempo. Imagine o impacto em seu coração ao ver um lugar de adoração sendo varrido do mapa de uma hora para outra. É como se o Paraíso, nos céus, sumisse e você, alguém que acredita nisso, visse o local sendo pulverizado. Há também outra questão que é o da fidelidade aos deuses, já que eles sobrevivem a partir da fé. Quando não existem mais fieis, um deus acaba por desaparecer. Por isso, os poderes olimpianos, que já estão minguados, precisam se estruturar na fé destas amazonas. E dar a palavra deles que eles irão recompensá-las por sua coragem. É uma baita de uma aposta.
O tema das duas últimas edições é a fé e se ela pode ou não ser comprada. Quando um deus se move para a Terra e passa a desejar ser adorado e idolatrado acima de tudo, isso representa uma postura correta? Diana se vê presa no meio dessa trama porque ela deve fidelidade aos deuses do Olimpo acima de tudo. E ela precisa tomar uma decisão importante para o seu futuro: pode ela se impor e dizer a um deus como ele deve se portar no mundo dos homens? Dizer não a um deus? Os dois capítulos finais também trabalham bem a noção de idolatria sem nenhum tipo de benefício prático. Trocar favores em troca de milagres. Na visão de Julia Kapatelis, a humana que é a mentora de Diana, isso é um abuso de poder. É não compreender a natureza humana e usar dos poderes divinos para escravizar pessoas. Não gostei da última fala da Julia porque considerei a postura dela diante do deus em específico correta. Atrelar isso a uma condição específica foi um passo atrás. Prefiro quando as personagens femininas assumem pontos de opinião fortes e sem arrependimentos.
No geral, essa é uma edição bem interessante, mas acho que ela cai no mesmo problema da edição passada: não tem muitas cenas de ação. É uma edição que vai discutir bastante questões de fé e de sororidade. Adoro as pequenas tramas também como a do relacionamento entre Steven e Etta, as confusões de Nessie na escola. Mas, estamos falando de um quadrinho de super-heróis da década de 1980 e ele pode ter sofrido com críticas bem pesadas na época. Hoje essa fase do Perez é considerada um clássico e dá para ver nas histórias o quanto o roteirista/artista estava à frente de seu tempo. É o auge da carreira dele, que começa a pegar trabalhos demais que não consegue cumprir com os prazos apertados. Isso faz com que ele tire o pé do acelerador. A postura da Panini em só publicar os vinte e quatro primeiros números da revista da personagem foi errada, embora eu entenda a lógica por trás. Resta aos fãs torcerem para que a editora traga mais histórias dessa fase mais para a frente.
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