Ao mergulhar no cancioneiro rio grandense em busca dos fundamentos ideológicos para a construção do seu “ro(ri)mance”, Donaldo Schüler poderia ter-se deixado seduzir pela fascinação de um mito poderoso que vem impregnando quase toda a manifestação cultural surgida na província, nos últimos oitenta anos: o mito do gaúcho heróico e superior. Esse monarca das coxilhas com sua força legendária e sua desvinculação do mundo produtivo tornou-se a grande ficção do canto oligárquico, capaz de envolver não apenas os setores populares, mas também os intelectuais comprometidos com o poder regional ou simplesmente ingênuos.
O autor, no entanto, fez uma outra opção, revirando o passado ao avesso e descobrindo no vozerio mitológico do universo agropastoril uma quase imperceptível fala. Fala excluída, seqüestrada, quase desconhecida, a fala dos pobres, dos vencidos tanto na antiga ordenação latifundiária quanto no estado modernizador dos imigrantes. Dessa miserável humanidade percebeu-lhe o lamento, a voz do tatu que nega toda a exaltação heróica, referindo-se inversamente a um mundo de pobreza, de humilhações e de desemprego.
Ao reabilitar as canções e trovas do tatu, o autor faz mais do que um trabalho arqueológico a favor dos vencidos: projetou-as para o nosso tempo. E assim, ao tatu-peão sucede o tatu-operário e a esse o tatu-marginal. A linha de continuidade delimita uma tradição de sofrimentos e opressões da qual não escapa sequer o juiz (o próprio narrador?) que ao invés de condenar o tatu-transgressor, percebe-se a si mesmo como integrante dessa confraria humana até hoje eliminada do direito à História e à Arte.
Enquanto construção, o texto não é menos significativo. A forma do rimance — relatos isolados que vão se articulando organicamente através da temática e das quadras do tatu — é a forma com que os derrotados buscam descortinar a sua própria identidade. Uma expressão literária arcaica encontra aqui a sua modernidade radical: o engenho do artista transformou o passado em experiência inovadora.
Se no plano nacional, o tatu situa-se na família do Jeca Tatu e de Macunaírna, como bem observa o crítico Fábio Lucas, no plano regional, a narrativa de Donaldo Schüler aproxima-se da melhor ficção de Cyro Martins, Ivan Pedro de Martins e Luiz Antônio de Assis Brasil, desmistificadores do gaúcho enquanto lenda a serviço das frações dirigentes.
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