O discurso antiafricano na Bahia no século XIX

O discurso antiafricano na Bahia no século XIX Fábio Ramos Barbosa Filho


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O discurso antiafricano na Bahia no século XIX





Corpos perigosos, perigosa teoriaO livro que tenho a honra de apresentar aqui é a versão modificada da Tese de Doutorado defendida pelo autor em agosto de 2016, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Trata-se de um trabalho que pode ser chamado, sem qualquer impropriedade, de radical.

Radical em sua inserção singular no campo teórico da Análise de Discurso, retomando aquilo que para alguns pode soar anacrônico, isto é, a relação entre teorização e tomada de posição política, que aqui não se deixa representar por um acréscimo a posteriori, mas sim por uma determinação de olhar e do arranjo conceitual que é explícita e marca todo o desenvolvimento do trabalho.

Radical em sua perspectiva analítica, recusando tanto as respostas totalizantes que se esquecem do imbricamento entre real da língua e real da história quanto uma gramaticalização excessiva do corpus (que torna o momento da interpretação uma espécie de colocação “em contexto” do material linguístico).

Radical em sua escolha de objeto e em seu manejo, mostrando que, longe de ser um corpo passivo que se deixa marcar a ferro e fogo pelo poder, o corpo negro recusa sua redução à ferramenta de trabalho, a servo sexual e a vida puramente biológica para, em seus gestos de insubmissão, atingir a figura plena de sujeito.

Radical em sua aventura formativa: o texto baila entre autores contemporâneos e outros mais vinculados ao início da Análise de Discurso, entre os trabalhos desenvolvidos no Brasil (notadamente os de Eni Orlandi e os de uma geração formada por esta pesquisadora) e aqueles francófonos, entre autores facilmente reconhecíveis no interior do campo da Análise de Discurso e outros de áreas afins, tecendo aí uma escrita particular, rigorosa em sua formulação, severa em seus desdobramentos analíticos, alegremente triste em suas conclusões – que extrapolam o objeto próprio de análise do texto e atingem essa fratura que chamamos Brasil.

Gostaria agora de explorar, de forma mais específica, alguns pontos altos do trabalho que certamente produzirão seus efeitos na filiação teórica e analítica na qual o autor se insere. É uma questão de tempo.

E pelo tempo começo, pois o modo como o autor coloca essa questão central para operar em seu trabalho é extremamente refinada: nem passado longínquo, aquilo que queda para sempre no murmúrio surdo, nem identidade com o presente, como se ao tempo fosse recusada a dimensão do passar, a temporalidade neste livro é pensada como a articulação sempre contingente entre temporalidades distintas (e aqui se nota a filiação althusseriana do autor) que se chocam produzindo efeitos específicos nas discursividades. Um efeito amplamente explorado no trabalho é justamente aquele em que discursividades distintas, com temporalidades distintas, aparecem saturadas na horizontalidade do enunciado.

Outra questão central é a retomada do conceito de arquivo no desenvolvimento do texto. Aqui, o trabalho alcança uma densidade não apenas teórica, mas profundamente analítica, pois o autor não se exime de pensar, do ponto de vista mais teórico, as consequências de um pensamento materialista sobre a questão do arquivo, e, do ponto de vista analítico, o fato essencial de que um arquivo coloca em relação discursividades que, por um efeito de arquivo, produzem a evidência do “documento” e do “fato histórico” que na análise são remetidas ao jogo entre a memória e o possível, entre a determinação e a contingência.

Do ponto de vista enunciativo, um dos desafios da análise que se desdobra neste livro, e que está articulada à dimensão do arquivo, é o de como fazer figurar a voz negra diante da monumentalidade de um arquivo institucional, policial, jurídico, jornalístico, em que os corpos negros são “falados” pelos aparelhos repressivos e de Estado.

No entanto, e principalmente através de uma cuidadosa reflexão sobre o rumor enquanto objeto discursivo (que certamente merece atenção pelos estudiosos do discurso), o autor nos mostra como a figura do negro enquanto potencialmente insurgente é textualizada e dá corpo ao “medo branco”. Ao mesmo tempo, e entredentes, algo de uma discursividade para além do que aquilo que o Estado deixa escapar, deixa-se escutar por um murmúrio que invade sutilmente a sintaxe dos enunciados.

Quanto à questão da história, que atravessa tudo o que disse mais acima, vale ainda ressaltar que a questão da gênese e da origem é deslocada em favor de uma concepção mais discursiva: não se trata exatamente de saber determinar os fatos que dariam origem a certos eventos, mas de observar os discursos-fundadores como lugares de estabilização e ancoragem de certos modos de produção de significação.

Há ainda um ponto a ser demarcado, e que já faz parte da trajetória de pesquisa do autor, que é o pensamento sobre as relações entre o social e o político e entre o jurídico e o cotidiano. Nessa direção, a análise aqui desenredada torna um pouco mais visíveis os processos que tentam conter, pelo jurídico, a dimensão verdadeiramente política. A própria placa, que deveria ser usada pelos “pretos ganhadores”, é ao mesmo tempo um pedaço de metal, um pedaço de história e uma tentativa de administrar juridicamente aquilo que provém do campo da política. Nesse sentido, nada pode ser mais material que essa infame placa, nos sentidos que ela produz e nos sentidos que são recusados pelos pretos ao deitá-la fora. Nem cidadãos, nem estrangeiros, os pretos são um incômodo para a cidade planejada (por decreto) de Salvador, no seu encontro com a cidade existente, com suas relações comerciais, políticas e cotidianas já inscritas numa certa memória. É no corpo negro que se marcará essa contradição da forma-cidade, que delimita o espaço interno e o outro hostil (que, nesse caso, é interno ao espaço da cidade, diferentemente do índio).

Considero que este livro é uma amostra perfeita daquilo que cabe a um analista de discurso, ou seja, fazer-se de imbecil diante das evidências que se acumulam e nos soterram. Retomando um provérbio chinês, Michel Pêcheux diz que “quando lhe mostramos a lua, o imbecil olha o dedo”. Olhar o dedo é justamente penetrar surdamente no reino das palavras, sem chave, mas com algum método. Fábio Ramos Barbosa Filho perscruta cuidadosamente os dedos que se lhe apresentam, disseca-lhes as ranhuras, confere-lhes as unhas, torna visíveis marcas que estão na sintaxe dos enunciados, no jogo entre enunciado e enunciação, no choque conflituoso de memórias, nos silêncios e apagamentos de sentidos. E vê também o dedo que aponta e acusa que o Brasil simplesmente ainda não existe. Mas, parece dizer este livro, talvez existam os brasileiros.

Termino com as palavras do autor: “que se torture, mate e expulse, que se inscreva nos documentos um espaço de repetição que permita que ainda hoje, séculos depois, o corpo negro seja o espaço do arbitrário, do indício, da suspeita, das balas perdidas e dos casos isolados, um suspiro de alteridade insubmissa, debochada e impertinente sempre encontrará o lugar do sentido como forma de resistir”.

Que este trabalho impertinente encontre a leitura insubmissa e debochada que merece.

Lauro Baldini
Departamento de Linguística
Instituto de Estudos da Linguagem
Universidade Estadual de Campinas

História do Brasil / Sociologia

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