Do escritor e ensaísta Rubens Teixeira Scavone, (1925 - 2007), pioneiro-divulgador da Ficção Científica no Brasil; autor do romance "O homem que viu o disco voador" (1958) — um dos mais bem sucedidos lançamentos da fc brasileira — e da antologia "O diálogo dos mundos" (1963), entre outros trabalhos. Scavone recebeu o Jabuti em 1973 por seu romance mainstream "Clube de Campo" e presidiu a Academia Paulista de Letras por vários mandatos.
Apaixonado pela História e literatura inglesa, Scavone foi buscar inspiração no clássico Os Contos de Canterbury ('Middle English: Tales of Caunterbury') de Geoffrey Chaucer — obra escrita há mais de 600 anos: "é uma coleção de histórias (duas delas em prosa, e outras vinte e duas em verso) escritas a partir de 1387 até a morte do autor em 1400, por Geoffrey Chaucer, reputado como um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde Southwark (Londres) à Catedral de Cantuária para visitar o túmulo de São Thomas Becket. A estrutura geral é inspirada no Decamerão de Boccaccio" —, para compor um dos seus contos mais engenhosos: "O 31º peregrino", publicado em 1993 pela editora Estação Liberdade; capa de Rodney Vernacci com ilustrações de Giselda Leirner.
Trata-se de uma história extremamente significativa em termos humanos e emocionais. Uma narrativa tocante e de estilo incomum que, através de um instrumental exclusivamente léxico, transporta o leitor para o passado medieval com uma eficiência rara. Ainda mais porque não segue os parâmetros protocolares da fc convencional. As descrições são ligeiras e não há muitas explicações para situar o leitor. Toda a ambientação emana do estilo rebuscado, que lança mão de uma infinidade de palavras desusadas. Esse estilo, com um quê de barroco, pode parecer estranho ao leitor moderno, mas se deve à escolha do autor, que se fez passar pelo próprio Chaucer. Os Contos de Canterbury relatam as histórias de trinta peregrinos (entre eles, o próprio Geoffrey Chaucer) a caminho da "Catedral da Cantuária" — local em que o Arcebispo Thomas Becket, (n.1118 — m.1170; canonizado em 1173), foi martirizado pelos cavaleiros de Henrique II. Cada um dos romeiros assume um arquétipo social e por ele é batizado. Por isso os personagens não têm nomes, mas classificações: o Pároco, o Padre da Freira, o Frade Mendicante, o Monge, a Prioresa, a Mulher de Bath, o Tecelão, o Tapeceiro e o Tintureiro (que formam uma trindade importante na narrativa de Scavone), o Mercador, o Vendedor de Indulgências, o Estudante de Oxford, o Cozinheiro, o Carpinteiro, o Magistrado, o Cavaleiro, o Escudeiro, o Moleiro, o Cônego e seu Criado, o Médico, o Provedor, o Lavrador, a Freira, o Homem do Mar, o Feitor, o Proprietário Rural, o Beleguim e o Estalajadeiro.
Scavone aproveita a narrativa para fazer considerações muito interessantes sobre o Roteiro dos Peregrinos (há um mapa do mesmo na quarta capa do livro, desenhado por James Scavone) que guarda ligações com a mitologia de São Tiago e, por sua vez, remete aos primórdios de outro caminho de peregrinação, Santiago de Compostela, com uma surpreendente explicação da origem desse termo que justifica perfeitamente a releitura fantástica que Scavone dá a obra de Chaucer.
Chaucer/Scavone conta a história de um até então não citado trigésimo primeiro peregrino, que se une aos romeiros a meio caminho. Trata-se da "Mulher Grávida", cujo estado parece ter relação com o sobrenatural e alarma os peregrinos católicos que, naturalmente, são muito supersticiosos. A história relatada pela Mulher Grávida é, em si, uma joia do horror gótico medieval, que reporta aos clássicos do sobrenatural que formam o caldeirão no qual foram cozidos todos os gêneros fantásticos modernos.
Entretanto, O 31º peregrino é uma novela de Fc. É claro que, para ser classificada assim, há que se encontrar nela algum componente explícito do gênero, e ele surge à altura devida, quando a Mulher Grávida abandona o grupo durante a noite e vai encontrar seu destino, que é testemunhado pelo narrador Chaucer/Scavone. Mas isso é menos importante que os conflitos humanos que emanam das relações entre os arquétipos definidos por Chaucer e das elucubrações filosóficas, históricas e sociológicas do autor/personagem (...) O 31º peregrino está entre os melhores textos da FCB, ao lado de "A escuridão", de André Carneiro, e A hora dos ruminantes, de José J. Veiga.
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