Niki

Niki Tibor Déry


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Niki


A História de um Cão




Para o poeta Henri Michaux, o olfato canino é um "fantástico catálogo, constantemente atualizado", um "cardápio de fedores" cujas nuanças fariam corar os gourmets e os enólogos, limitados por seu parco vocabulário. E um simples passeio da cadelinha Niki, de Tibor Déry, abre as páginas de uma "enciclopédia de bolso" em que "o conjunto das árvores de uma avenida substituía o conteúdo de um ano inteiro de um jornal diário".



Niki, aliás, sempre se surpreende com a insensibilidade e o comportamento irracional de seus donos, que a proíbem de participar das refeições para, ao final, servirem-lhe "os bocados mais deliciosos, os ossos", e que a privam "da liberdade de rolar no mais refrescante dos perfumes, ou seja, nos despojos de animais putrefatos". O romance de Déry, porém, mostra como esses relatos trazem sempre um subtexto alegórico: as histórias de cães são sempre um pouco mais do que histórias de cães, da mesma maneira que os cães são algo mais do que animais, e os homens são algo menos do que humanos.



Embora não tenha o caráter explícito de uma fábula contra o totalitarismo (como ocorre, por exemplo, com "A Revolução dos Bichos", de George Orwell), o livro de Tibor Déry guarda um sentido político inequívoco. Ambientado na Hungria do final dos anos 40, o romance conta como a pequena fox terrier Niki se introduz no cotidiano do casal Ancsa, que perdera o filho na Segunda Guerra. Ao longo do livro, o que parece ser apenas um retrato sensível da graciosidade de Niki e de seu papel na economia afetiva da casa serve de ponto de partida para denunciar a atmosfera asfixiante de um país que mergulha na ditadura comunista, com seus expurgos e prisões sem julgamento.



Uma simples consideração sobre a "pedagogia" dos Ancsa pode dar lugar a um discurso exaltado: "O abuso de autoridade, essa gangrena de todos os reis, caudilhos, ditadores, de todos os diretores, gerentes, secretários, de todos os pastores, da gente que cuida de vacas ou de porcos, de todo chefe de família e de todo educador, de todo irmão mais velho, de todos os velhos e de todos os jovens a quem estão subordinadas outras criaturas entusiasmadas, essa fetidez, essa doença, essa infecção do ser humano que nenhum outro animal sanguinário conhece, essa maldição, essa blasfêmia, guerra e peste era desconhecida no lar dos Ancsa. Eles não mutilavam desnecessariamente a liberdade de Niki. O círculo afável da disciplina, para onde a atraíam delicadamente, no interesse da coletividade, era transparente e transponível, aberto em todos os seus pontos para o mundo amplo das necessidades reconhecíveis".



No geral, porém, Tibor Déry se equilibra habilmente entre a psicologia animal e "insights" sobre a liberdade humana. Suas intuições sobre a noção de tempo dos cães são agudas, e quem quer que tenha convivido com eles reconhecerá em Niki o olhar nostálgico e de autocomiseração com que os cachorros respondem à ausência do dono: "Do mesmo modo como recebia com uma felicidade exuberante cada retorno de seus donos, fosse após dez minutos, ou passados alguns dias, cada adeus a abatia com igual intensidade: considerava-o como sendo para todo o sempre. (...) Como podia explicar a esse sentimento concentrado de morte que ela apenas ia à feira e em uma hora estaria de volta?".



Mas, ao mesmo tempo, essa tragicomédia cotidiana dos cães pode ser premonitória e mostra que a catástrofe está sempre na iminência de se concretizar: após várias perseguições políticas, o dono de Niki é detido, ela passa a morar apenas com a senhora Ancsa, e sua vida se transforma numa interminável espera, com os ouvidos sempre atentos aos passos que se aproximam da porta.



Da mesma maneira, nos diz Déry, a condição do animal doméstico (cujo destino é determinado pelos donos, cujos passeios e momentos de prazer são regidos por regras arbitrárias) é simétrica à alienação do homem, que não pode se apoderar de seu destino: "Em sua dependência absoluta dos humanos, [Niki] se assemelhava àqueles presos que desconhecem a causa da prisão e por quanto tempo serão mantidos ali".

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u747.shtml

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heloísa
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