Descrição
M.L.
Chamo-me Manuel, o L já não sei o que representa. Não me lembro do dia certo em que faço anos. Não me lembro já da minha mãe. Pego no meu pai e levo-o a custo até à cama de molas centenárias e já coxa; velha. Rangeram quando o meu pai se deitou. Os ossos do meu pai rangeram também.
O meu pai é um velho que já mal me reconhece. Por vezes olha-me como se me visse pela primeira vez e abraça-me com uma saudade repetida que me fez indiferente. Outras vezes olha-me e não sabe quem tem na sua frente. Imobiliza-se na inteligência que sempre lhe reconheci. Eu sei que ele não me reconhece. Ele sabe que não se reconhece a si próprio. Imobiliza-se na certeza de que o universo mudou de lugar e esqueceu-se de o avisar.
Desço até à terceira rua de mortos empilhados num monte com vista para o Tejo (que bela vista se tem depois de morto). Fico uma hora mais em frente da campa do desconhecido que mandou gravar na pedra as palavras que têm de ser minhas:
Não Levo Saudade
***
M.L. é um homem atormentado pelo passado e pelas palavras gravadas na pedra tumular de um homem enterrado no Cemitério dos Prazeres: Gervásio. Vive em Lisboa com o seu pai que sofre de esquecimento perpétuo. Visita incessantemente o Cemitério dos Prazeres. Ao sábado, quando a esperança se renova, vai ao parque esperar pela mulher do vestido azul.
Um dia compra um caderninho preto com uma moeda de dois euros que roubou da carteira do seu pai. Depois, abandona-o sozinho em Lisboa e inicia uma busca pela história do homem que dorme sete palmos abaixo do chão. Em Idanha-a-Nova encontra a ex-mulher de Gervásio, que guarda um molho de cartas da guerra escritas por Gervásio, escritas numa trincheira nas Ardenas onde flutuam fezes nas poças castanhas abertas à força de botas enterradas na lama, mas que continuaram a ser escritas depois de Gervásio ter retornado a Lisboa, como se a guerra não tivesse terminado. Em 1946 a família abandona-o num rés-do-chão de um prédio que já caiu na Penha de França. A filha mais nova, Vitória, desapareceu sem deixar rasto.
M.L. retorna a Lisboa, vive agora com o seu novo amigo António junto às Portas de Benfica, enfiado numa caixa de cartão de um frigorífico de alguém.
Chama-se Lourenço, o M já não sabe o que representa. Não sabe nada da sua mãe, apenas que morreu quando ele era jovem, do seu pai menos ainda. Descobre que Gervásio viveu com uma segunda mulher e com a filha desta; Catarina Espanca, sua última esperança, que vive, segundo dizem, para os lados de Bragança. Ele e António empreendem uma viagem até ao recanto do recanto, ambos encontrando aquilo que não querem ver; o corredor com o tamanho de doze mil passos, o cão que se move como se fosse de plástico, o pato sem cabeça que corre desenfreado contra o corpo morto do pastor. António morre também, de doença, fruto dos mergulhos fundos de outubro que dava na ribeira que passa rente a Alfaião, nunca tirando a roupa, sempre voltando encharcado para casa. M.L. enterra-o num buraco escavado depois de três voltas da cabra-cega, junto ao castanheiro jovem que cresce em frente da casa de Catarina Espanca, onde o pastor que veste uma fina camada de pele sobre a sua caveira fuma e cospe sangue e nicotina enquanto aguarda por Catarina, dia sim, dia não. No palheiro, o gemido compassado do prazer.
No epílogo do epílogo da sua história que se desvanece, nada mais resta a M.L. a não ser retornar a Lisboa, ele e Vitória, enquanto o esquecimento perpétuo começa-lhe já, também, indelevelmente a assentar. Reencontra o seu pai que morre numa cama de hospital. Escreve sem parar no seu caderninho preto já negro como ele dentro. O seu pai não sabe. Escreve furiosamente como se escrevesse para um homem que jaz para além dele; traslada-se para o papel.
- Pai, o que me aconteceu em 1946?