Ana Sá 01/03/2022
Sobra ética e falta estética
O enredo de "Sobre os ossos dos mortos", publicado originalmente em 2009, é promissor: numa região florestal da Polônia, uma aposentada apaixonada por animais e por astrologia segue uma vida de poucos amigos, marcada por sua oposição a tudo que envolve a caça local, até que (já no início do livro) ocorre a misteriosa morte de um de seus vizinhos, morte esta que dá início ao ar de suspense que conduz a narrativa até seu final.
Sendo direta: tinha tudo pra eu ter gostado deste livro, mas não rolou! Pra mim, sobrou comprometimento ético da autora com o tema dos direitos dos animais e faltou um compromisso à altura com a estética do romance.
Na minha (sempre) humilde opinião, a construção do suspense foi rasa e previsível, pois aquilo que senti e suspeitei no primeiro quarto do livro foi o mesmo que senti e confirmei no desfecho da história. O discurso eco-militante da protagonista aparece descolado da narrativa e cheio de clichês, o que, por vezes, reduz uma questão complexa a ideias soltas e superficiais do tipo "comer bife é uma atitude egoísta" ou "qual a diferença entre um cachorro e uma vaca?". E o pior, a meu ver, foi a parte da astrologia, que aparece sempre desarticulada de qualquer elemento do texto. Sério, os mapas astrais se fazem presentes DO NADA, chegando a LUGAR NENHUM, e não estou dizendo isso só para ser a aquariana diferentona!
Acho que existe uma linha tênue que separa uma personagem excêntrica de uma personagem sem nexo, e aqui me pareceu que tudo acaba descambando pra imagem da velha louca dos signos e dos cachorros. É verdade que o próprio livro ironiza essa condição, quando, por exemplo, esse estereótipo é reproduzido nas falas dos policiais a quem Dusheiko (nossa protagonista) recorre para fazer as suas denúncias. É possível que a protagonista, com sua personalidade caótica, convivendo em um ambiente masculino e masculinizado, simbolize o modo como o discurso ambientalista é ridicularizado pela sociedade? É possível sim, mas, a meu ver, faltou a autora gastar caneta para sair de uma intenção literária e conseguir provar isso na materialidade do texto, deixando sua digital na escrita.
Sabe qual foi a minha sensação? Que a autora sentou e listou os elementos (interessantes) com os quais queria trabalhar (direitos dos animais; astrologia; suspense; velhice) e não teve tempo de definir qual seria a cola que daria liga a tudo isso! E pode ser que eu tenha alguma razão, sabia? Vou me explicar:
Em um dos meus históricos de leitura, me alertaram aqui no Skoob que este romance tinha sido escrito sob encomenda. De fato, considerando as entrevistas e biografias às quais tive acesso após a leitura, me parece que não apenas o livro passou por certa pressão editorial, como a autora nem tinha muito interesse pela escrita de um romance policial naquele momento. "Sobre os ossos dos mortos" é, inclusive, pouco lembrado quando a crítica faz menção a seus títulos mais aclamados. Ou seja, "Sobre os ossos dos mortos" é o livro que ganhou mais popularidade no Brasil provavelmente por ter sido o primeiro (um dos primeiros) traduzido por aqui, mas talvez ele tenha pouco a nos dizer sobre o porquê de Tokarczuk ter ganhado o Nobel.
Mas o livro é de todo ruim? De jeito nenhum! Ele flui tanto que é possível ler a obra em dois ou três dias. A ambientação dessa reserva florestal em algum lugar isolado de uma Polônia gelada é um ponto forte. Rapidamente nos sentimos dentro da paisagem. O modo como Dusheiko vai construindo amizades com outros velhos solitários e desajustados é muito interessante e, em algumas passagens, muito carismático. O capítulo "O canto dos morcegos", no qual ela e seus amigos dançam, bebem, fumam, rindo de si mesmos, tem sua beleza! Aliás, o envelhecer, o ser velho, é um ponto a favor do livro, de modo geral. Compartilho um grifo meu:
"Quando chegamos a uma certa idade, precisamos entender que as pessoas sempre ficarão irritadas conosco. Antes, nunca tinha percebido a existência ou o significado de gestos como acenar com a cabeça rapidamente, desviar o olhar, repetir "sim, sim", feito um relógio. Ou checar as horas, ou esfregar o nariz. Mas agora entendo muito bem que esse teatro todo só quer expressar uma simples frase: 'Dá um tempo, sua velha!'".
Em suma, não é de todo ruim de ler, mas é ruim com certa frequência! rs
Para fechar esta resenha, quero deixar claro que eu sou do time que anda de mãos dadas com Lima Barreto no que diz respeito à defesa de uma literatura militante para os nossos tempos. Mais do que na época do autor de Policarpo, acredito que o século XXI é o século dos enfrentamentos, das desconstruções, então não tenho nenhuma ressalva (pelo contrário!) às literaturas com viés militante. Sendo assim, a eco-militância presente em "Sobre os ossos dos mortos" foi um ponto que encarei, inicialmente, como positivo. Contudo, minha implicância veio depois, quando notei que sobra ética e falta estética no romance. Pode ter sido tudo culpa da expectativa que criei por causa do selo do Nobel? Pode ser sim, mas o fato é que assim foi... Não recomendo não! rs
Obs.: pensando essa temática, eu sou muito mais "Oryx e Crake", de Margaret Atwood, por exemplo, que, mesmo longe de ser perfeito, consegue trazer pra ficção questões importantes relacionadas à bioética e à indústria da carne sem perder de vista seu projeto ficcional.