spoiler visualizarClayton 05/06/2020
A Comédia humana inteira
Vol. IX
Estudos de costumes
Cenas da vida parisiense.
O nono volume abre com o romance Esplendores e Misérias das Cortesãs, um romance autônomo, mas que é melhor compreendido por quem leu Ilusões Perdidas (vol.VII) e até O Pai Goriot (IV). Paulo Rónai, o grande balzaquiano responsável pela edição brasileira pela Globo defende a ideia de que os três são partes de um todo, e a análise da vida parisiense é apenas um fator de unificação: a viga-mestra dessa construção é o surpreendente e extraordinário personagem Vautrin.
Esse romance tem como protagonistas o trio Lucien de Rubempre, o jovem e vaidoso poeta que sofre e provoca agruras em Ilusões Perdidas; Esther Von Gobseck, cortesã típica de Paris, sobrinha perdida do velho agiota Gobseck (vol.III) e o abade espanhol Carlos Herrera, que salva a vida de Lucien no final do romance acima citado.
Sendo o livro uma continuação direta dos acontecimentos de Ilusões Perdidas, causa estranhamento Balzac interpor entre este e Esplendores... as obras do volume VIII, mas considerando que entre eles encontra-se a novela A Casa Nucingen, pode-se compreender o que pensava o autor.
Sintetizando o enredo: acompanhamos Lucien em seu retorno brilhante a Paris, agora sobre a tutela do misterioso abade, que o orienta e define cada um de seus passos. Por isso mesmo, temos um Lucien mais seguro e discreto, além de maquinal, sempre em busca de ascensão social. Um obstáculo, contudo, e seu amor intenso por Esther (no que é correspondido), o que socialmente é proibitivo, além das exigências da família Grandlieu para que o rapaz tenha a mão da filha-herdeira da aristocrática família. A situação de Lucien piora pela improvável paixão que o bancário venal Nucingen alimenta por Esther, o que gera, por um lado, lucros à empreitada de Lucien, mas por outro coloca em seu encalço e no do abade três agentes espiões de Paris que agem à margem da lei, embora não ignorados por ela. Contençon, Peyrade e Correntin são astutos, gênios da maquinação, mas sequer desconfiam que estão diante do gênio do crime, talvez o maior personagem já criado por Balzac, ancestral dos niilistas Dostoievskianos...
Dá sequência à obra a novela Os Segredos da Princesa de Cardignan, um drama cômico onde acompanha-se o crepúsculo de uma das grandes damas frívolas dessa louca Paris, a outra duquesa de Maufrigneuse. A Revolução de Junho de 1830, que Balzac não cansa de lamentar, impacta diretamente na nobreza sustentada da duquesa que, já beirando os 40 anos, ainda tem uma chance de atrair a paixão de um jovem amante ideal na figura de Daniel D'Arthez, o grande escritor e agora político que outrora sofrera, com Lucien de Rubempré, Bianchon e outro jovens de gênio, as misérias de Paris (Ilusões Perdidas). Essa novela é um admirável estudo da mulher ávida de amor, mestra na arte da coqueteria e do ludibrio, instrumentos essenciais para se "jogar" na sociedade parisiense do século XIX.
Segue-se a essa novela o conto Facino Cane, rara obra do acervo balzaquiano narrada em primeira pessoa (e o narrador soa bem como o próprio Balzac) que conta, em cores pitorescas, o passado do personagem-titulo, agora um cego músico, mas que outrora fugira da prisão e teve acesso à enorme fortuna oriunda de um tesouro de origens escusas. O conto, ambientado na Itália, com tons exóticos a la As mil e uma noites (que é citada, inclusive, na obra), investe na aventura e na constatação do que se oculta no interior de um homem, ainda que decrépito.
Sarrasine é uma novela com iguais tons pitorescos, e nos narra, a partir do diálogo do inominado narrador com a sra. De Rochefide (Beatriz - Vol. III) a história por trás da misteriosa figura idosa amparada pela rica família de Lanty. É uma história cuja essência é o ideal artístico, e os sentimentos eróticos escusos por trás dessa busca. Homoerotismo, crime e venalidade compõem essa obra, mistura ousada dentro da obra de Balzac, que ecoa apenas em outra obra da Comédia: A Menina dos Olhos de Ouro (Vol. VIII), com iguais implicações trágicas.
Com a mesma preocupação com a arte, embora num enfoque diferente e mais brando, temos a última obra do volume, a novela Pedro Grassou. Nela acompanhamos as desventuras do pobre "troca-titas" Pedro, um pintor medíocre e plagiador que, não obstante, é um bom rapaz, e sincero amante das artes. O personagem tenta obstinadamente criar uma obra genuína e genial, mas seus esforços são risíveis. Quando menos espera consegue atrair a atenção real a uma obra, é condecorado (um enlace irônico de Balzac) e consegue clientela, em especial uma família burguesa de quem cai nas graças, pavimentando assim um rumo seguro, ao menos no quesito social, em sua vida.
Balzac aqui nos põe a refletir as distintas naturezas entre o ser que cria e sua constituição moral, além de morder com sarcasmo a sociedade que eleva tantos "talentos" medíocres ao invés de valorizar os grandes de sua geração. Não falta ainda uma alfinetada na burguesia então em ascensão que busca, no patronato de artistas, elevar-se qualitativamente nessa sociedade que presumivelmente se guia pelo refinamento dos gostos artísticos e estéticos.
Há, por fim, talvez nessa novela o germe que fez nosso Machado de Assis compor seu conto Um homem célebre.
Esse nono volume da imensa obra de Balzac demonstra assim as diferentes facetas desse grande gênio, mesmo que em meio a alguns sestros e adiposidades de seu estilo (as descrições excessivas que se interpõem entre os leitores e a consumação de suas expectativas, por exemplo).
Convivem dentro desse gênio o historiador, o esteta, o pensador político e o filósofo num equilíbrio nem sempre ideal, mas numa dimensão de sabedoria poucas vezes alcançada por outros autores da literatura mundial. Há, sobretudo, vida em pujança e uma vastidão de perspectivas.
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