André 23/06/2020As intermitências da morte é mais do que uma ficção especulativa sobre o que aconteceria se mais ninguém morresse. É uma crítica sobre a sociedade capitalista ocidental e um ensaio sobre a relação humana com a morte, tudo isso refletido com muita ironia.
Aliás, o livro me lembrou da época que era adolescente e tinha quase como meta de vida ser o mais irônico possível em qualquer situação cabível. Felizmente, Saramago é muito mais habilidoso no uso do sarcasmo do que jamais fui.
Mas não que o autor tenha exagerado, o insólito da trama combina perfeitamente, diria até que exige, essa narrativa mordaz. A ironia é perfeita para fazer as críticas necessárias, para dar o humor e para quebrar o absurdo da narrativa.
E devo dizer também que a narrativa é maravilhosa. A leitura, apesar de profunda e ampla, nunca fica pesada ou chata, é sempre bem dinâmica e instigante. Dá pra ler de uma só vez, se você tiver tempo o suficiente. Porém, em alguns momentos senti que fica prolixa demais, sem que houvesse necessidade para construção da trama, o que pode desagradar a alguns.
Sobre a estória em si, o livro tem duas partes, digamos. A primeira é a crítica à sociedade e a trama em si não é tão importante, o que vale a pena mesmo é ver Saramago esmiuçar como para a nossa sociedade a morte é um inconveniente econômico apenas.
O capitalismo torna a vida humana somente mais um negócio, assim também o é com a morte. A grande preocupação do governo, dos grandes empresários, da monarquia e da Igreja é como a falta de mortes pode prejudicar os interesses deles, todos egoístas, evidentemente. Não há preocupação humanitária, o capitalismo só se importa com o capital, com o perdão da obviedade.
E é interessante ver como em tempos de pandemia, como o em que vivemos no momento que escrevo essa resenha, essa visão se mostra amargamente precisa. No fim, a vida humana só importa se a sua permanência for interessante para os interesses econômicos de quem tem o poder. Se a morte for mais interessante para eles, que se reabra o comércio e deixe que todos morram.
Já a segunda parte é uma estória tocante sobre a relação entre humanidade e morte. Não a relação que vemos atualmente, mas uma maneira idealizada por Saramago. E, de fato, uma relação muito mais desejável e saudável.
Nos acostumamos a tratar a morte como algo amedrontador, talvez por conta da difusão de conceitos judaico-cristãos sobre ela, ao invés de perceber que vida e morte talvez sejam somente dois lados da mesma moeda. Que morte é a mais humana das naturezas e viver a vida com medo dela é se privar de, coincidentemente, viver e poder morrer em paz.
É claro que essa é só a minha interpretação da obra, mas justamente essa é a beleza do livro, permitir que qualquer um possa refletir sobre o que é a morte e o que ela significa.