Pandora 15/08/2022O jornalista Dirceu Fernandes Lopes nos disse uma vez durante uma aula na faculdade que bastava que escrevêssemos UM bom texto. Deste, viriam outros. Nesta estreia de sua literatura, há 40 anos, Isabel Allende não só criou este romance magnífico, como escreveu muitos outros livros que a consagraram como a escritora viva de língua espanhola mais lida no mundo.
Questionada numa entrevista que deu há alguns anos ao El País sobre o que existe de mágico no cotidiano respondeu: “A vida é muito misteriosa. Por que estou eu aqui contigo, conversando? Porque há 35 anos escrevi um livro e tudo o que tem acontecido comigo desde então tem um elemento inesperado, Incontrolável, surpreendente, impossível de prever.”
Há muitas coisas sobre as quais eu poderia discorrer a cerca desta narrativa, da escrita apurada e envolvente à elaboração detalhista de personagens e situações ao longo das décadas retratadas neste livro. Allende escreve sobre tradição, família e propriedade, sobre revolução, luta e empoderamento, sobre magia, misticismo e premonição com uma pena precisa e potente. E sim, senhoras e senhores, aos que dizem não gostar de política: aqui vemos como ela norteia nossas vidas; quer ajamos ou não, as consequências vêm para todos.
Outra força da narrativa está nas mulheres: desde o núcleo principal Nívea - Clara - Blanca - Alba até aquelas que de alguma forma se relacionaram com os Trueba: Pancha, Nana, Férula, as irmãs Mora, Amanda, Tránsito Soto, Ana Díaz.
Isabel consegue, também, outra façanha: colocar lado a lado um dos personagens mais detestáveis da literatura, Esteban Trueba, e uma das mais carismáticas, Clara Del Valle. E ainda os casa! É dele a seguinte fala, sobre as atividades políticas da mãe de Clara: “¡Esa señora está mal de la cabeza! Eso sería ir contra la naturaleza. Si las mujeres no saben sumar dos más dos, menos podrán tomar un bisturí. Su función es la maternidad, el hogar. Al paso que van, cualquier día van a querer ser diputados, jueces… ¡Hasta presidente de la República!” - pág. 93. E esta sobre os moradores de sua fazenda: “Nadie me va a quitar de la cabeza la idea de que sido un buen patrón. Cualquiera que hubiera visto Las Tres Marías en los tiempos del abandono y la viera ahora, que es un fundo modelo, tenía que estar de acuerdo conmigo. Por eso no puedo aceptar que mi nieta me venga con el cuento de la lucha de clases, porque si vamos al grano, esos pobres campesinos están mucho peor ahora que hace cincuenta años. Yo era como un padre para ellos. Con la reforma agraria nos jodimos todos.” - pág. 75.
Já Clara é aquela que sentencia uma frase que vai além de seu significado óbvio: “No se puede encontrar a quien no quiere ser encontrado.” - pág. 176. E também a que não cala a verdade: “Pedro Tercero Garcia no há hecho nada que no hayas hecho tú. Tú también te has acostado con mujeres solteras que no son de tu clase. La diferencia es que él lo ha hecho por amor. Y Blanca también. - pág. 259.
E depois de dois capítulos particularmente terríveis, o que dizer do epílogo desta incrível obra-prima? Terminei chorando.
“Este planeta é como um barco em que estamos todos. Temos que remar juntos. Porque se um remar para um lado e outro para o outro, o barco irá virar.” (Isabel Allende)