Dhiego Morais 13/07/2020A Metade SombriaApós estar por décadas esgotado, A Metade Sombria (anteriormente lançado como A Metade Negra) finalmente retorna às prateleiras brasileiras, desta vez pelas mãos da editora Suma, sendo o quinto volume a fazer parte da coleção Biblioteca Stephen King (depois de Cujo, A Hora do Lobisomem, O Iluminado e A Incendiária), com nova tradução de Regina Winarski, em uma edição em capa dura soft touch e alto relevo, além de conteúdo extra.
Um dos livros mais aguardados pelos fãs de Stephen King, A Metade Sombria narra a história de Thad Beaumont, um escritor de pouco sucesso, mas que ganhou muita fama e dinheiro escrevendo sob o pseudônimo de George Stark, responsável por uma série de thrillers violentos que cativaram uma legião de fãs. No entanto, posto em um beco sem saída por um jornalista espertinho que havia então descoberto o seu segredo, Thad decide dar um fim antes de tudo, finalmente “matando” George Stark em um ato teatral surpreendente, indo à público por meio de um escandaloso artigo da revista People, em sua edição de 23 de maio.
“O raio às vezes cai duas vezes no mesmo lugar, e de tempos em tempos, em cidades pequenas, acontecem assassinatos que não podem ser imediatamente solucionados.”
Como escritor, Thad poderia ser considerado pela crítica como um profissional à beira da mediocridade, com livros de pouco sucesso. Entretanto, quando incorporado por George Stark, seu álter ego mais sombrio, ele renasce como um escritor de imenso sucesso, entregando ao público tudo aquilo que Thad não teria coragem suficiente para escrever, produzindo romances “não tão sérios” – como ele mesmo categorizava –, mas dotados de violência e de uma escrita e personagens inebriantes ao público.
Embora Thad reconheça a importância de seu pseudônimo, ele não nega que sempre houve algo de muito perigoso em permitir-se dar voz a Stark; um efeito que o assustava tanto quanto os efeitos maculados do vício em álcool, um antigo companheiro de Thad. Logo, quando a chantagem, a ameaça de ser desmascarado por um jornalista irrompe, impossível de ser barrada, Thad Beaumont agradece comedidamente por finalmente poder dar um fim a tudo: matar figurativamente George Stark.
Assim como a esposa de Stephen King, Tabitha King já revelara que não tinha muito apreço pela história de A Metade Sombria, eu já havia escutado de outros leitores e leitoras que não gostavam desse livro. Então, comecei sem muitas expectativas e, na medida em que avançava pelas páginas, a sensação de desgostar da obra não surgia; muito pelo contrário, página por página, capítulo a capítulo me pegava mais preso à história sombria de Thad Beaumont. Talvez haja um tempero inebriante nas histórias mais pessoais e sombrias de Stephen King, à moda de O Cemitério, por exemplo, que torne outros leitores, assim como eu, conectados à trama quando menos se espera.
Inspirado no mito do doppelgänger – uma lenda germânica que conta a história de uma criatura capaz de se converter fielmente em uma cópia de um humano qualquer –, A Metade Sombria entrega uma história carregada de tons equilibrados entre o bom suspense e o terror, quando George Stark, o pseudônimo famoso de Thad Beaumont volta dos mortos, desta vez para se vingar de Thad. Seria o reaparecimento de Stark a tentativa de outra pessoa em afundar a carreira de Beaumont? Ou seria Stark uma ferramenta teatral orquestrada pelo próprio Beaumont? Ou ainda, teria Stark ganhado vida de fato?
“Você quer ter coragem e mandar ele embora, e não só porque tem medo de que ele seja perigoso. Vira uma questão de amor-próprio. Mas... você fica adiando. Encontra motivos para adiar. Tipo, está chovendo e talvez ele crie menos caso se for mandado embora em um dia de sol. Ou talvez depois de todos terem uma boa noite de sono. Você pensa em mil motivos para adiar. Percebe que, se os motivos soarem bons para você, consegue manter pelo menos um pouco do seu amor-próprio, e um pouco é melhor do que nada. Um pouco é também melhor do que todo, se ter todo significa que você vai acabar machucado ou morto.”
Uma série de crimes começa a acontecer, todas de pessoas ligadas ao enterro prematuro de George Stark. A partir daí temos a entrada de uma importante figura das obras e do universo compartilhado de Stephen King: o xerife Alan Pangborn. Pangborn é um homem estritamente da lei, com um senso de justiça apurado, uma mente sagaz e, invariavelmente uma habilidade de descrença compreensível.
King sabe como construir e desenvolver habilidosamente suas personagens, dando o espaço necessário para tanto, conduzindo a trama com inteligência, ao passo que entrega diálogos deliciosos e naturais, sem a característica forçada de outros romances do gênero. A título de exemplo podemos citar os encontros entre a família Beaumont e Pangborn, bem como os momentos solitários de Thad, Stark e do próprio xerife.
É fato que o rei do terror e do suspense nem sempre entregue finais que agradem a todos os seus leitores, mas em A Metade Sombria, King direciona sua história para um clímax surpreendente, em uma confluência de personagens e plots que certamente deverão animar os fãs. Para os mais veteranos, talvez consigam observar um dos raros momentos em que a personalidade de King, com suas tramas e personagens bem delineados se encontra com um final fantástico, bruto, à moda de Richard Bachman.
Outro acerto acontece por parte do cenário: Castle Rock, uma das cidades fictícias mais famosas de Stephen King surge como o epicentro dos acontecimentos desse clássico do autor. Diferentemente de A Pequena Caixa de Gwendy, por exemplo, Castle Rock não é subaproveitada, mas é constantemente conectada a outros fatos importantes de sua história (alô, Cujo, alô, A Zona Morta).
A Metade Sombria flerta intensamente com a imagem do próprio autor, Stephen King. Lançado originalmente em 1989, o livro narra não somente o embate entre criador e criatura, entre autor e pseudônimo, sob a forma de Thad Beaumont e George Stark, mas trata-se também do próprio acerto de contas entre Stephen King e Richard Bachman. Assim como Stark se traduz como a parte mais sombria de Thad, a parte capaz dos maiores males, Bachman é a metade de King que desconhece finais felizes, a metade de um King que não poderia vir à tona tão cedo (seja por sua necessidade em narrar mais de um romance por ano, fato problemático de muitos anos atrás, de um público que dificilmente leria muito de um mesmo autor em um ano, saturados ou não; seja pela necessidade em extravasar o seu lado mais sombrio como autor). Inclusive há um extra na edição da Suma de Letras, onde Stephen King comenta sobre a importância de ser Bachman. Da mesma forma que Beaumont deu um fim a Stark, King revelou aos jornais após ser descoberto que Bachman havia falecido de câncer do pseudônimo.
“Você acha que sou um monstro, e talvez esteja certa. Mas os monstros de verdade não estão livres de sentimentos. Acho que no fim das contas é isso, e não a aparência, que torna os monstros tão assustadores.”
Algumas reflexões podem ser levantadas sobre o livro, entre elas: até que ponto, da ficção à realidade, poderíamos traçar o limiar entre a mente do escritor, incapaz de controlar sua faceta mais perigosa, aquela que nunca deveria vir a público e os instintos predatórios de sua contraparte, a criatura insatisfeita com o seu fim?
Talvez um dos livros mais pessoais de Stephen King, A Metade Sombria surge como o ultimato do próprio autor ao sentimento frustrado de ter sido descoberto, ao sentimento dividido por ter encerrado a vida de Bachman pela insensatez de outrem; e, ainda, como uma despedida, um último e definitivo acerto de contas, agora do jeito certo, entre dois autores que se complementam.
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