Gustavo Kamenach 26/05/2024Penso, logo existo ou destruo?Sempre que leio uma distopia, fico um tanto apreensivo por notar diversos pontos nas histórias que são muito similares ou até mesmo iguais a situações que vivenciamos em nosso tempo. Agora adicione uma trama pós-apocalíptica que permeia o imaginário de todos nós há muito tempo; o que seria do mundo e da sociedade caso todas as instituições que os regem caíssem e a humanidade tragada para a barbárie? Esses dois elementos narrativos que nos assombram tanto são brilhantemente unidos por Margaret Atwood em Oryx e Crake.
Mudanças climáticas, manipulação genética e falta de ética nas pesquisas científicas, pandemia, corporações megapoderosas comandando o mundo de forma implícita, desigualdade social, cerceamento da liberdade e desvalorização das artes. Há algo familiar para vocês?
Num futuro próximo, tudo isso foi misturado e como engrenagens de uma máquina fadada ao fracasso, vimos a humanidade perecer e a partir daí começamos a acompanhar nosso protagonista, o homem das neves, um náufrago do apogeu da humanidade. Isolado, indefeso e inumano; a mercê de criaturas geneticamente modificadas. Através de flashbacks, vamos conhecendo todos os detalhes que levaram a essa total destruição. O homem das neves parece traumatizado e vai se lembrando aos poucos, desde a sua infância até o início da derrocada da sociedade.
Com uma narrativa inicialmente confusa, a autora vai soltando detalhes do passado e presente e gradativamente prende o leitor, você fica curioso sobre como tudo chegou ao ponto em que o Homem das neves, antigamente chamado Jimmy, está. Também há momentos de suspense típicos das narrativas pós-apocalípticas, com situações muito aflitivas. Entretanto nem só de ação o livro se resume, ele promove indagações filosóficas inquietantes, inclusive essa é a melhor parte na minha opinião. A autora promove a discussão entre o avanço científico e o negacionismo; o dilema entre o criador e a criatura; o conhecimento como um fator benéfico e ao mesmo tempo fonte de poder e destruição.
É incrível como a autora critica de forma enfática e com um certo tom de deboche diversos tabus da nossa sociedade.
O protagonista que se autodenomina O Homem das neves (em inglês Snowman que foneticamente lembra "Is no man" ou seja "não é homem"). Sua caracterização: um homem maduro, cabelos e barba compridos, envolvido por um lençol como uma manta, apoiando-se num cajado. Diante disso temos claramente a autora dando um caráter messiânico ao protagonista e durante o enredo ele vai assumindo esse cargo meio a contragosto culminando numa decisão final importante. Ele deverá decidir se quer voltar a ser Jimmy ou continuar como Homem das Neves...
Que livro incrível, é intensamente provocativo ao mesmo tempo que entretém. Certamente continuarei os livros que compõem a trilogia, mesmo sabendo que provavelmente não terei as respostas para o grande questionamento de Oryx e Crake. E isso é perfeito!