Luciano Luíz 07/01/2022
Em meados da década de 1990, lembro da última adaptação (naquele tempo era a mais recente) do romance ASFALTO SELVAGEM - ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS de NELSON RODRIGUES.
Publicado originalmente em formato de folhetim, ou seja, diariamente num jornal nos anos de 1959 e 60, é o romance mais famoso do escritor que se consagrou com grande estilo por ter mostrado um narrativa versátil e obviamente bastante pessoal.
A história a princípio é simples: uma família, a menina adolescente apaixonada pelo primo, a prima apaixonada pela prima, um idiota apaixonado pela menina apaixonada pela prima e por aí vai.
Engraçadinha passa a ter sua vida contada a partir dos 12 anos e vai até os 18, quando tem um relacionamento proibido, mais precisamente quando seu pai faz uma revelação. A prima, Letícia a ama, é lésbica, mas esta é noiva de Silvio, o primo que Engraçadinha diz amar. E por fim temos Zózimo, o pobre imbecil eternamente apaixonado por Engraçadinha, mas repudiado por ela.
O romance tem pouco mais de de 100 capítulos. É divido em duas partes: DOS 12 AOS 18 e DEPOIS DOS 30.
A parte dois é bem maior, há novos personagens e a vida cotidiana de Engraçadinha que não é das mais agradáveis. Não dá para ir muito a fundo porque acaba estragando a experiência de quem ainda não leu.
EM 1964 foi feita uma adaptação da parte 1 (batizado de ASFALTO SELVAGEM) pro cinema e em 66 a parte 2 (com o nome de ENGRAÇADINHA, DEPOIS DOS 30).
Em fins dos anos 70, mais precisamente, 1981, data de lançamento, saiu outro filme, ENGRAÇADINHA, com Lucélia Santos. Não sei se esse filme cobre apenas uma parte ou é um resumão do todo. Não assisti nenhuma destas três versões e realmente não faço ideia de como ficou a questão de fidelidade ou qualidade, mas o pouco que vi me pareceu interessante.
A minissérie dos nos 90 tem Alessandra Negrini no papel de Engraçadinha com 18 anos e Cláudia Raia depois dos 30. Reassisti após a leitura do romance e apesar de ter uma boa quantidade de cortes por causa do tamanho do livro, assim mesmo é um trabalho de qualidade em diversos aspectos, tanto na interpretação de atores e atrizes quanto na ambientação (não tem todas as falas geniais, mas vá lá). São apenas 20 capítulos (na televisão era 20, na versão em DVD foi reduzido para 18 capítulos. Não foram feitos cortes, apenas deram um jeito de editar para que coubesse em 3 discos).
A narrativa de Nelson Rodrigues é uma beleza. Ele viaja entre o erudito e o popular com seus personagens. Situações do cotidiano ganham outros sabores em suas palavras. A dona de casa, vivendo em meio a pobreza, tendo de aturar um marido que não ama, por causa dos filhos, o desejo de trair, alguém que tem um status social e que acredita estar acima dos demais, a culpa por um crime que vai remoendo por dentro, a paixão desenfreada e o sexo como uma atração mais do que impecável.
Estamos no século 21, ano de 2022 e ainda há tabu para diversos assuntos, mesmo sobre o homossexualismo, o sexo casual, as condutas éticas, o sexo na família e entre familiares e por aí vai. Como foi ler esse romance nos anos 50 e 60? Quantos se escandalizaram, se horrorizaram, sentiram-se ofendidos física e moralmente?
Mesmo hoje tem comentários de que o romance é uma afronta a família, moral, bons costumes, às mulheres, e claro, tem também questão sobre outros preconceitos e o racismo.
Nelson tinha a língua afiada (na escrita) e por isso conseguiu produzir um texto que mesmo tendo os anos 60 como cenário é extremamente atual em praticamente tudo (exceto nos carros e usar telefone de boteco).
Aliás, naquela adaptação da globo, o título ficou somente o subtítulo do livro: ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS. Para quem gosta de uma boa história nacional, mesmo que não tenha lido o romance, compensa ir atrás. No entanto, se possível, confira o livro primeiro. Deixe sua imaginação desenhar o rosto (e por que não?, o corpo) de Engraçadinha (e de Silvio, Letícia, Zózimo - e sua camisa rubro-negra -, Silene - ah, Silene na eternidade de seus 14 anos - e o meritíssimo Odorico - pobre dele - e outros e outras mais) e tenha uma leitura que você vai levar até o fim da vida.
Merece ficar entre os melhores na estante.
Ah, antes que eu esqueça, esta edição da editora Harper Collins contém alguns textos introdutórios. Não leia. Ignore-os pelo motivo de que há spoilers e estes realmente vão estragar a leitura. Deixei-os para depois quando concluir o último capítulo. E sinceramente, são textos que apenas falam de que há coisas no romance que são desatualizadas e blá, blá, blá e que hoje não seriam aceitas... Enfim, estes textos não são essenciais. O romance de Engraçadinha é essencial.
L. L. Santos
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