spoiler visualizarPedro3906 07/01/2024
"Só fui até o fim da lógica deste mundo."
Começo essa resenha reclamando do empilhamento interminável de pontuação e quebra de raciocínio ao decorrer da carta inicial do livro. Tive flashbacks de guerra com uma outra história que censuro citação, enfim. E, de repente, estou a ler um autor marroquino na borda do ano, primeira leitura e expectativas claras: pensei eu debates contundentes àquilo martirizando a cabeça. Sou ótimo em escolher primeiras leituras. Detesto todas.
Em "Aquele que é digno de ser amado" viajamos ao acaso entre feridas e apagamentos. Nosso personagem diria que principal, Ahmed, é intrínseco para todos os relatos epistolares, quer seja narrando ou como interlocutor. De origem marroquina e homossexual, a materialidade e relações sociais permeiam seu nascimento ? quase que brutalmente interrompido por um aborto ?, afetando a infância reclusa de poucos amigos e então, sua maioridade (que consegue ser mais triste que o resto). Abdellah utiliza do preceito "fins que justificam os meios", colocando-as, as cartas, em ordem decrescente, provocando efeito rebote no leitor já que nada tem solução: se começou ruim, imagina o que vem por aí.
Através das personagens e suas interligações amorosas ou familiares, entramos em meandros ilícitos onde a palavra "amor" não tem sentido nenhum. É substantivo nebuloso, de verbetes apagados. Amores baseados em sexo, em violação corporal de adolescentes por adultos, em modelos de prestação de serviço, recheados por dentro do mais abjeto e sujo patriarcalismo e, sobretudo, neocolonialismo. A abordagem colonizadora do Ahmed para com os acontecimentos da própria vida é crítica, sendo ele tratado como boneco manipulável aos caprichos imperialistas. Sua cultura, lembranças, afetos, são suprimidos na ordem francesa, em prol daqueles que lhe deram "tudo", lhe deram migalhas e pediram a alma. Que dizer de: "Hoje, com trinta anos, tudo o que eu sou desde os dezessete vem de você. A minha vida inteira é uma construção do Emmanuel"? Ou ainda do sangue escorrendo em "Quer eu queira, quer não queira, sou um indígena da República Francesa, que me aceita como ?Midou?, atualmente. ?Ahmed? não é possível, muçulmano demais, atrasado demais".
Atrasados demais. É isto que somos. Atrasados pelas burocracias e showbusiness maculado de leis e estatutos fingidos. Não se mata por sexualidade, se mata todo o resto. Ufa, ainda bem! Durante a leitura foi impossível deixar de lado as semelhanças de discurso e acontecimentos presentes em uma peça teatral que assisti não muito tempo atrás: A hora do lobo. Onde, por sua vez, uma brasileira imigrante na França, vejam só, passa por apagamento e controle de si em troca da permanência sagrada no território civilizado. No país dos educados. Bem, a produção teatral é ótima mas o enredo cuspindo o fascismo da boca pra fora em elaboração palestrante desagradou-me. Não gosto de explicações, prefiro o incômodo.
Termino este primeiro livro convidado por mim mesmo a conhecer e ouvir e refletir socialmente culturas gigantescas, ancestrais, escondidas nas sombras da periculosidade dos discursos infames. E, a quem sentir falta, sinto-me precoce e despreparado numa análise profunda das atitudes do Ahmed. Ele é humano. Somos erros. Tentamos a todo custo nos salvar.