Marina 03/03/2021
Um quê de poesia triste
"A cachorra" conta a história de Damaris, uma mulher humilde que carrega muita culpa: primeiro, por não ter conseguido evitar o afogamento de Nicolasito, un amiguinho de infância e segundo, por não poder engravidar e ser mãe.
O livro começa quando Damaris adota uma cachorrinha e a chama de Chirli, nome que seria da filha que Damaris e seu marido Rogelio nunca tiveram.
* C/ spoilers *
É fácil gostar de Damaris. Ela é uma mulher aparentemente frágil, mas bastante forte, decidida, cheia de amor e de boas intenções.
Quando adota Chirli, decide dar à cachorrinha todo o amor materno que nunca recebeu (pois sua mãe morreu quando ela era pequena) e nunca pôde dar, por não conseguir engravidar. E esse amor é puro e dedicado.
Porém, Chirli é fujona e rebelde. Com o tempo, Damaris passa a ter raiva da cachorra, que não retribui o seu amor, senão que sempre foge, se machuca e volta para casa apenas para receber os cuidados da dona. O ressentimento aumenta ainda mais quando Chirli engravida e não cuida dos seus filhotes e chega ao ápice quando, por fim, a cachorra destrói as cortinas de Nicolasito, o que provoca una reação violenta de Damaris, que enforca a cachorra e cheia de culpa (outra vez a culpa), decide que é uma boa ideia morrer também (mas não sabemos se chega às vias de fato).
Li várias resenhas que ressaltam o viés feminista da obra, desde o trocadilho com o título do livro ("a cachorra" é o animal ou a mulher?), até mesmo essas questões da maternidade nos dias atuais (a mulher deixa de ser mulher por não poder ser mãe?).
Porém, para mim, o que mais pesou no livro foram sentimentos como a melancolia, o amor obsessivo, a raiva, a apatia e o remorso.
O tempo todo chovia e esse clima transpassa as páginas. O casamento de Rogelio e Damaris é frio e distante, a tristeza por não poder ser mãe persiste, assim como os traumas do passado, o medo da morte de Chirli, a frustração com Chirli... É tudo bastante intenso. E a linguagem do livro é simples, a história é contada de forma simples também, mas ainda assim, tudo é tão triste...
Para mim, Damaris deposita todas as suas esperanças de "redenção" na cachorrinha. Mas Chirli não corresponde aos seus desejos, não é uma verdadeira filha, é "ingrata", a deixa envergonhada perante a família e mesmo assim conseguiu ser mãe (só Damaris não consegue...). No final, toda a raiva, e frustração acaba levando ao desfecho do livro, ainda mais porque a tristeza por uma maternidade "falida" entra em choque com o trauma de Nicolasito. E mesmo tentando se convencer de que fez certo, Damaris sente culpa. Muita culpa.
Quantas Damaris não existem por aí, apenas procurando alguém para amar e cuidar, sentindo-se vazia, solitária e culpada? Lendo o livro, lembrei bastante de Macabéa (A Hora da Estrela, Clarice Lispector), porque achei Damaris doce e sofrida, e porque é impossível não enxergar a poesia presente nessas páginas de prosa.