Alê | @alexandrejjr 19/11/2021
Post mortem de uma leitura
Alto lá! Não vou mais usar latim e muito menos juridiquês neste texto além do título, até porque desconheço tal vocabulário. Só me soou sonora e explicativa a junção de tais palavras para tentar expor os argumentos que pretendo abordar nos singelos parágrafos a seguir.
Eu sempre tive curiosidade de ler a Ana Paula Maia. Antes de me tornar leitor dela, sou um fã desconhecido e fiel. Acompanho, com alguma regularidade, entrevistas da autora no YouTube e gosto da maneira como ela pensa a literatura. Agora, teria eu escolhido o livro certo para entrar no mundo dos invisíveis sociais marcados pela brutalidade da violência que tanto fascina a escritora? Tenho sérias dúvidas.
Percebam o seguinte: “Enterre seus mortos” não é um mau livro. É bem escrito, possui uma voz narrativa característica e personagens razoavelmente cativantes. Aliás, é um excelente exemplar de transição entre uma literatura escapista, mais descompromissada, com uma literatura mais séria, de certo rigor técnico na forma e algum grau de reflexão. O que não me agradou então? Muitas coisas.
A primeira delas é o conceito de narrativa episódica. Acompanhar Edgar Wilson - personagem recorrente dentro da ficção da escritora, presente nos livros “Carvão animal” e “De gados e homens” - ao lado do padre excomungado Tomás em suas atividades morbidamente cotidianas de recolhedores de animais mortos não é das experiências mais empolgantes. Além disso, a ideia de extrapolação da realidade, um direito básico e inegociável de qualquer ficcionista, não ganhou minha simpatia aqui. Gente, qual estrada no mundo tem tanto animal morto assim, em que o recolhedor recebe duas, três chamadas por dia? Se esse trabalho existe no Brasil - e deve existir, claro -, ele não deve possuir essa demanda toda.
O segundo ponto é a forte influência estadunidense no estilo da autora. Pode ter pesado o fato da Ana Paula Maia também ser roteirista? Pode, claro. Mas percebam durante a leitura que “Enterre seus mortos” nem parece, às vezes, se passar no Brasil. Poderia ser facilmente uma história que se passa no Texas, por exemplo. E não, isso não dá caráter universal ao texto porque você não imagina os episódios do livro acontecendo, digamos, na Islândia ou no Japão. Só nos lembramos que estamos na terra do samba graças à falta de funcionamento de serviços essenciais e básicos como o do Instituto Médico Legal, o IML, algo que está totalmente dentro da nossa insossa realidade brasileira. Outra: por que raios o Tomás fuma charuto? Qual a justificativa para isso? Convenhamos: um recolhedor de animais mortos fuma um belo dum cigarro paraguaio, certo? Charuto é coisa de empresário, mafioso, político, enfim, gente do dinheiro, não de um trabalhador que luta pelo mínimo para viver o dia de amanhã. Mas tudo bem, aceito que este detalhe é um ranço pessoal, apenas.
Precisamos falar da violência, claro. Além das descrições dos animais e pessoas mortas, temos pessoas enforcadas, urubus que bicam olhos e, acredite, um depósito abarrotado de corpos em putrefação, numa das cenas mais anticlímax do livro (apesar de conter uma boa dose de humor negro). E tudo isso para… nada. Por que tantos mortos na história? O que a comparação entre a sorte de ser recolhido e sepultado por ser um animal morto e o azar de ser um humano morto, sem um fim digno, quer dizer além disso mesmo? Parece que todas as possíveis discussões morrem no primeiro estágio de reflexão. A sensação, no fim, é de oportunidade perdida para poder adentrar com mais profundidade em algum tema ético pertinente a todos nós.
Então, minha gente, o que fica depois da morte de uma leitura? Isso aí. O fim, o breu. Ana Paula Maia ainda tem prestígio comigo e pretendo ler seus outros livros, que continuam oferecendo, pelo menos pelas sinopses, possibilidades interessantes. Mas eu não indico “Enterre seus mortos”.