Paulo 22/10/2020
Lilia Moritz Schwarcz é uma historiadora que eu admiro desde a época da graduação. Apesar de eu ser um medievalista, preciso aplaudir a forma como ela se destaca no meio simplesmente por fugir do padrão acadêmico, sendo acadêmica. Claro, ela consegue entregar um texto estritamente acadêmico, mas em suas publicações sua escrita é bem agradável e consegue entregar algo que o público comum pode apreciar. Seus textos não são complexos ou historiográficos demais, mas sempre mantendo o rigor metodológico. Ela pertence a um tipo de historiador que eu chamo de contemporâneo, por saber publicar para o grande público e agradando ao nicho especializado. Sei que é uma blasfêmia dizer isso, mas o texto dela se assemelha (em organicidade) ao do Leandro Narloch (argh… falei o nome dele…). Mesmo assim, algumas coisas me incomodaram no texto dela o que me preocupou um pouco, mas nada espetacular.
Esse posfácio foi colocado gratuitamente na Amazon, foi escrito em 2017 para o livro Brasil – Uma Biografia. A ideia do livro é falar a respeito do indivíduo Brasil, desde os seus primórdios anteriores ao descobrimento até os dias atuais. São apresentados aspectos sociais, econômicos e políticos de uma maneira concisa. Não vou comentar sobre o livro maior em específico porque essa não é a ideia dessa resenha. Neste posfácio, Lilia busca apresentar os sintomas para as mudanças sócio-políticas ocorridas entre 2015 e 2017. O quanto a democracia no Brasil foi abalada a partir das denúncias de corrupção e as escolhas econômicas mal fadadas do governo Dilma. Lilia parte de dois argumentos básicos: a esquerda perdeu espaço por conta de seus próprios erros e a Constituição foi tomada de assalto por partidos que eram opositores ao governo PT e usaram-na a seus próprios fins, mesmo distorcendo-a.
Analisando depois o aspecto puramente textual deste posfácio acabei achando-o um pouco diferente do que estou acostumado da autora. Já li outras obras dela como O Sol do Brasil e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis e eu costumo gostar da estética textual dela, da forma como ela encaixa as palavras. Aqui isto não aconteceu. Achei o texto corrido demais e ela apresentando pontos com uma velocidade difícil de acompanhar. Um dos pontos altos da escrita da Lilia é a capacidade incrível que ela tem de emendar vários temas em seus argumentos. É perceptível o quanto seus parágrafos são profundos sem serem difíceis. Existe uma organicidade no seu fluxo de pensamento, algo comparável à própria forma como ela ministra suas aulas (tive a feliz oportunidade de assistir a algumas delas). Por isso me incomodou um pouco o quanto o texto parece truncado. Não sei se foi por causa de uma limitação no tamanho do texto para um posfácio, mas o resultado é que seus argumentos parecem rasos e pouco convincentes. Faltou se aprofundar nos pontos que ela chama a atenção.
Em diversos pontos eu concordo com as argumentações dela. A gente pode traçar os problemas atuais de confiabilidade no sistema político brasileiro a escolhas ruins do governo Dilma. Desde o segundo governo Lula que vemos acompanhando o quanto a democracia brasileira se transformou em um modelo semi-parlamentarista, em que o presidente precisa de um acórdão com o Legislativo para ter governabilidade. Aliás, essa palavra surge mais a partir dessa última década. Governabilidade. Se até o ano 2000 o Executivo era preponderante em suas decisões, o Legislativo ganhou cada vez mais espaço. E atualmente o Judiciário se fortaleceu demais, corroborando o argumento da autora. O abismo que existia entre votantes e votados se tornou maior, com as chamadas “promessas políticas” se tornando apenas um engodo e uma série de falácias pronunciadas para ganhar votos. Sim, o sistema democrático brasileiro passa por um momento ruim. Com as denúncias de corrupção o eleitor não deseja mais participar do processo eletivo porque ele não vê uma mudança real acontecendo. É curioso que Lilia traz as manifestações de 2016 à tona e ela se questiona o que aconteceu no pós-manifestações, já que o povo brasileiro é ainda mais vilipendiado do que na época, e não sai mais às ruas. É como se aquele momento específico fosse o último suspiro.
Acho complicado afirmar que o governo Dilma fracassou em sua maior parte por problemas na economia. Quase metade de sua argumentação é voltada para questionar isso. Acho que sim, as escolhas foram erradas, mas não atribuo somente a isso a derrocada do governo PT. Havia também uma falta de preparo da própria presidente que se viu mal assessorada e enrolada em seu próprio jogo político. Ao não possui a mesma solidez política que o ex-presidente Lula, ela não foi capaz de criar uma imagem forte e que pudesse agregar um misto de intimidação a seus opositores com uma imagem de calma diante da tempestade. Como foi perfeitamente transparente no período, Lula era um animal político distinto de sua sucessora. Mesmo colocado contra a parede, sua imagem era indiscutível à época (hoje é o oposto disso). Além disso, o fato de não ter maioria no Congresso a tornava refém da troca de favores. Caso contrário ela não conseguia aprovar seus projetos. Algo que o atual presidente precisou aprender às duras penas. O jogo político é para os fortes. Quanto mais você se debate e deseja nadar contra a corrente, mais será tragado pelo turbilhão. De duas uma: ou o presidente se coloca acima do jogo político (como Lula fez) ou naufraga (como Dilma e Bolsonaro fizeram).
É curioso ver o quanto o texto da Lilia de 2017 era um texto pessimista, porém esperançoso. Me questiono se após as eleições de 2018 ela teria mantido esse posfácio. Outra crítica que eu faço aos argumentos dela, é que a onda conservadora já podia ser observada em 2016 com a eleição de Donald Trump nos EUA. Não fatorar a vitória do líder norte-americano na derrocada da democracia no Brasil é se esquecer de um ponto fundamental. Mesmo que só víssemos as mãos gordurosas de Trump apenas no final de 2018, os indícios estavam ali. E a organização de grupos contrários à presidente também denunciavam um radicalismo tupiniquim que se cristalizou algum tempo mais tarde. Enfim, este é um texto interessante que aponta vários sintomas para a atual doença que assola o Brasil. Principalmente no que diz respeito à polarização da população brasileira. Queria eu ter um pouco do otimismo da Lilia.
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