Érika 15/02/2022Vem vindo bom e termina sensacionalQuando a gente ouve falar de literatura russa, um dilúvio de nomes masculinos vem à mente. Poucas são as mulheres cujas obras chegam até nós — e todas do século XX. Mas a verdade é que já havia mulheres escrevendo na Rússia muito antes, produzindo obras significativas e granjeando sucesso literário. Uma das mais importantes foi Nadiêjda Khvoschínskaia. Contemporânea de Dostoiévski, ela chegou a escrever para as mesmas revistas literárias que ele e era bastante popular tanto entre a crítica, quanto entre o público, na sua carreira literária que durou 47 anos. Porém, aqui, o único livro dela a que temos acesso é “A moça do internato”, traduzido por Odomiro Fonseca e publicado pela @zoukeditora.
Há anos eu queria ler este livro, e finalmente o fiz. A novela, de cerca de 150 páginas, conta a história de Liôlienka (ou Aliona, ou Elena Vassílievna), uma menina de quinze anos, filha mais velha da família enorme de um pequeno funcionário público de província e aluna exemplar do pensionato em que estuda. Ou melhor, o livro conta como Veretítsin, outro funcionário que foi parar na província de N. como punição por ter afrontado ideologicamente o governo, acaba influenciando Liôlienka a enxergar a estreiteza das opções de futuro disponíveis para ela: um estudo que não passa de uma “decoreba” sem sentido ou um casamento com um noivo que ela nem pode escolher, e que passará a obedecer depois que sair da obediência dos pais, sem jamais ter direito à sua voz ou vontade. Eles são vizinhos e Veretítsin causa tal abalo na vida de Liôlienka em algumas conversas casuais junto à cerca que separa suas casas. Para ele, a situação não passa de uma distração dos seus problemas profissionais e pessoais, nos quais está profundamente absorto; em Liôlienka, porém, a interação desperta uma paixão não-correspondida que perturba seu espírito até os fundamentos.
A história contém uma reviravolta bem feita que não mencionarei para não estragar o prazer da leitura, pois ela redefine o rumo e os significados do livro. A atmosfera opressiva que acompanha a personagem durante a maior parte da novela é dolorosa, mas, nos muitos diálogos, colhe-se verdades, vê-se mentalidades chocantes e, no último diálogo entre Liôlienka e Veretítsin, o âmbito dos questionamentos ganha aquela amplitude e profundidade que marca a boa literatura russa. Passa-se das questões temporais às universais; da perspectiva pessoal à cósmica; confrontam-se diversas opções de destino, com suas qualidades e problemas, revelam-se as múltiplas facetas — contraditórias, mas verdadeiras — de uma mesma questão e dos mesmos personagens. O livro vem vindo bom e termina sensacional. Recomendo muito.
Além disso, o prefácio do tradutor é inestimável para conhecer um pouco a autora e compreender alguns conceitos fundamentais para os progressistas sociais da Rússia do meio do século XIX, tais como quem são os “niilistas”, naquele contexto, ou no que consistia, exatamente, a assim chamada “questão feminina“, frequentemente mencionada por outros autores clássicos.