mpettrus 21/03/2024
?A Magistral Estranheza das Memórias de Deborah?
?Quando a felicidade acontece, parece que nada aconteceu antes dela, é uma sensação que só se dá no tempo presente.?
??Coisas Que Não Quero Saber? é o primeiro livro da trilogia autobiográfica de Deborah Levy. Na Grã-Bretanha, o livro foi lançado com o subtítulo ?Uma resposta ao ensaio de George Orwell de 1946, 'Por que escrevo'?.
? A autora argumenta que ?[...] Estaremos nos iludindo se afirmarmos saber por que escrevemos, por que memórias específicas vêm nos assombrar ou por que aparecem em nosso trabalho décadas depois, transmogrificadas?.
Nesse livro, Levy nos conta da sua infância na África do Sul e da sua mudança para o Reino Unido, entre outras coisas, numa narrativa extremamente valiosa, instigante e lindamente escrita, embora um pouco irregular.
? Levy com uma pequena maleta e um velho diário nas mãos viaja para uma pousada isolada em Maiorca, administrada por uma proprietária taciturna cheia de segredos. Lá faz amizade com um lojista chinês a quem conta a história de sua vida, apesar da barreira linguística.
? Não quero pensar que no caso aqui, nós sejamos o ?lojista chinês?, mas tudo me leva a crê que podemos sim sê-lo. Esse também foi um recurso usado por Martha Medeiros no seu romance ?Divã?, no caso aqui, o Drº Lopes, lembram?!
? Tal qual o romance de Bolaño, o de Levy também é breve, curto, porém, cheios de significados e memórias. Interessante notar que a autora usa a narrativa de não-ficção como veículo para compartilhar com o leitor sua visão e entendimento dos conceitos feministas que dão sentido ao seu mundo nos seus momentos de desespero, descontentamento e turbulência em torno de suas experiências na infância e juventude.
? Dividido em quatro capítulos: começamos com a viagem da autora a Maiorca (neste capítulo temos duas imagens que jamais irá sair da minha mente - uma observação em escadas rolantes e um soldado se despedindo de sua mãe, irmã e namorada), em seguida, temos um salto no tempo para sua infância na África do Sul, depois para sua adolescência na Inglaterra e o choque cultural que por lá recebe e por fim, retornamos para Maiorca.
? Durante a narrativa, Levy discute as inspirações para seus primeiros romances, particularmente ?Nadando de Volta Para Casa?. É interessante como ela reflete sobre sua jornada pessoal para se tornar escritora, incluindo memórias de sua infância na África do Sul e mais tarde no Reino Unido.
As memórias compartilhadas conosco estão repletas de anedotas divertidas e comoventes numa escrita lírica e elegante; mas também coloquial e totalmente intensa.
? No entanto, a sua memória que mais me marcou foi o episódio da prisão de seu pai e todo o desdobramento que ocorreu em sua vida após esse acontecimento.
Nascida ,na então colonizada, em Joanesburgo, África do Sul, seu pai era um migrante judeu-lituano, enquanto sua mãe pertencia a uma família inglesa de classe alta.
?O seu pai, Norman Levy, juntou-se ao Partido Nacional Africano e opôs-se vorazmente ao regime do apartheid, acabando por se encontrar na prisão. Naquela época, Levy tinha apenas cinco anos. Ela logo se viu sendo discriminada pelo regime.
Esses estressores externos, mais tarde, ajudaram-na a explorar a identidade, a dinâmica de poder e a justiça social em sua escrita.
??Impulso Histórico? é o capítulo que detalha essas memórias vividas através dos olhos de uma criança branca. Enquanto leitor, para mim foi bastante envolvente, mas não no sentido de virar página após página, o que seria natural. Mas sim porque estava diante de uma prosa/estrutura com uma espécie de qualidade mágica; como se eu tivesse bebido um alucinógeno literário.
Confesso que fiquei hipnotizado e ansioso para saber quais outras informações brilhantes que Levy tinha reservado para mim.
? Mas, deixem-me esclarecer o porquê à narrativa de Levy me pareceu um tanto irregular, observação que fiz no segundo parágrafo dessa humilde resenha. Ela não é propriamente organizada de forma constante na sua prosa. Não que isso para mim fosse um problema, muito pelo contrário, tive que dá ?meu jeito? para me conectar com sua literatura.
?Não demorei muito a perceber, mas ela é uma criadora e não uma esclarecedora de mistérios. É uma fugitiva que escapa sempre que pode dos maiores esclarecimentos. E é isso que confere ao livro sua atmosfera sutil, imprevisível e surpreendente.
Ela escreve sobre depressão, sem nomeá-la, de uma forma sombriamente engraçada. Ela descreve a falta de direção, mas sabe para onde está indo: o ensaio é imaculadamente planejado. Existem muitos versos maravilhosos.
Como vou esquecer que até os cabides de uma pousada árcade de Maiorca foram perfeitamente descritos: "quatro cabides de arame torto na grade, pareciam imitar o formato de ombros humanos desamparados".
? Deborah Levy escreveu uma autobiografia respeitando a si mesma tentando resumir perfeitamente seu trabalho. Seria desonesto dizer para vocês que ela o fez devidamente, pois, esse é o meu primeiro contato com a sua escrita.
Sim, pretendo ler os outros dois volumes que compõem essa trilogia. E, sim, também estou curioso para ler seu romance ?Nadando de Volta Para Casa?.
? Mas, digo-lhes que é uma literatura bastante singular, objetiva no seu argumento em nos contar os percalços que enfrentou para se tornar uma escritora, astuta em usar sua voz para se fazer ouvir em um mundo extremamente patriarcal, pauta que ela faz questão de debater, discutir e dialogar.
? Levy nos mostra uma nova visão para analisar a opressão que inclua raça, classe e gênero. A trindade primordial dos tempos atuais para discutirmos estas novas maneiras de pensar acompanhadas de ações que oferecem uma forma de colmatar a lacuna e promover novas relações em todo o espectro para iniciarmos a mudança social no nosso século.
? Embora seja militante do movimento feminista, essa autobiografia não é uma tese acadêmica, não é um relato furioso de uma mulher que grita por seu próprio poder.
É uma articulação muito mais sutil, mas igualmente contundente, da voz de alguém expressa em palavras com uma veemência que só aqueles que travaram uma guerra podem ter.
? Talvez por isso, suponho eu, que sua escrita literária não permeie pela racionalidade porque ela nos mostrou que a vontade de escrever pode nem sempre ser racional.
E nesse detalhe implícito eu percebi toda a estranheza da narrativa de Levy, embora original, sonhadora e imperdível essa estranheza é exatamente o que senti ao ler seu romance.
É uma narrativa inteligente, comovente, mas acima de tudo estranho. A sua escrita abordou grandes momentos obliquamente nos revelando a magistral estranheza de suas memórias.
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