spoiler visualizarCrítica, eu? 25/09/2018
Um Pequeno Favor
Muito já foi falado neste site sobre Gillian Flynn, mas é impossível tratar de Um Pequeno Favor, livro de estreia de Darcey Bell, sem ressaltar que, com Garota Exemplar, Flynn lançou uma tendência que muitos autores tentaram, sem sucesso, copiar.
Em Um Pequeno Favor, tudo começa quando Emily Nelson pede para a amiga, Stephanie, pegar Nicky, seu filho, na escola, prometendo que voltaria à noite para buscá-lo. Quando Emily não volta, Stephanie entra em desespero. Dias depois, o corpo morto de Emily é encontrado boiando num rio.
O livro é todo narrado em primeira pessoa, alternando entre as vozes de Emily, Stephanie – que aparece tanto como narradora quanto como a voz em seu blog – e Sean, marido de Emily. No início, a fiel amiga Stephanie é a principal narradora, compartilhando notícias e pedindo ajuda às suas seguidoras fiéis para encontrar Emily. Quando a blogueira e Sean começam um relacionamento afetivo, as vozes da amiga desaparecida e do marido aparecem na narração.
Stephanie é uma personagem fútil, estranha e muito inverossímil. Suas atitudes são convenientes demais e ela parece mais um desenho animado do que um personagem de um thriller psicológico. Mãe de um filho cujo pai é seu meio-irmão, Stephanie tem a pretensão de se apresentar como um tipo desequilibrado, mas tudo o que Darcey Bell consegue fazer da personagem é alguém por quem se sente repulsa, um ser completamente desprovido de personalidade. Os problemas de Stephanie, que poderiam dar uma dimensão muito maior a ela, são pouco desenvolvidos no livro e acabam parecendo um elemento cuja única função é chocar o leitor. Quando, no final do livro, Stephanie ajuda Emily num assassinato, fica bem claro que a personagem foi pouquíssimo explorada. Os fatos são, sim, interessantes, mas a psique dos personagens envolvidos não é bem trabalhada, o que confere à obra um tom de desespero.
Emily é uma personagem igualmente mal desenvolvida. Sua aparente morte se prova uma tentativa de golpe no seguro, da qual seu marido participava. Stephanie foi escolhida pelos dois a fim de ser “o peixe”, ou seja, a pessoa que serviria de suporte para a história deles. Por ser completamente vulnerável, Stephanie sustentaria o desaparecimento de Emily sem saber de nada. Muito convenientemente, a protagonista tem uma irmã gêmea, Evelyn, que decide se matar. É esse o corpo que aparece boiando no rio. Ninguém do seu convívio sabia sobre o parentesco e sua mãe (surpresa!) estava perdendo a memória. Na história de Emily, tudo parece sorte demais. É claro que ninguém espera que uma história como a de Amy, em Garota Exemplar, aconteça com seu vizinho, mas, apesar disso, o enredo parece crível. Esse contrato com o leitor é quebrado em Um Pequeno Favor. Tudo soa parece fantasioso demais.
Sean é um homem completamente solto na história. Apaixonado cegamente por Emily, ele se mostra disposto a apoiá-la em qualquer coisa. E esse é mais um ponto negativo: todos apoiam inconsequentemente a protagonista, quase ninguém se coloca em seu caminho e a única pessoa que o faz é assassinada por ela de forma pouco convincente. Como em A Garota no Trem, de Paula Hawkins, Darcey Bell tenta criar uma conexão entre personagens disfuncionais, cujas vidas acabam ligadas e destruídas. O problema é que o elo entre eles é fraco demais. A autora tenta também mostrar o poder feminino quando, já no fim, Emily e Stephanie se juntam para destruir Sean. A atitude delas carece de explicação e a de Sean é completamente aleatória.
Outro ponto bastante problemático no livro é a ausência de datas. Tudo se passa sem que o leitor tenha noção cronológica da história. Não há nenhuma indicação do tempo decorrido entre o desaparecimento de Emily e o desfecho do livro. Mais uma aposta negativa da autora foi a criação de uma personagem blogueira completamente irreal. Stephanie escreve coisas que ninguém escreveria em um blog, tem uma linguagem infantil e fútil e desaparece e some da sua vida virtual sem nenhum prejuízo em relação às seguidoras. Além disso, os fatos que serão posteriormente utilizados no desenvolvimento da história são destacados com exaustão, como se o leitor fosse esquecer deles e se perder no enredo.
Talvez o ponto mais disfuncional do livro seja, no entanto, a relação de Emily e Stephanie com seus filhos. É como se elas não fossem nada além de mães, apesar de Emily ter uma carreira bem-sucedida no ramo da moda e de Stephanie ser uma blogueira com relativo sucesso. Tudo isso é apagado pelo papel delas como mães. É possível notar uma tentativa de fazer com que esse pareça um comportamento patológico delas, tentando fazer com que os filhos tenham uma infância diferente das suas, mas, como tudo no livro, isso também é mal desenvolvido e deixa um certo incômodo.
Um Pequeno Favor é, portanto, uma tentativa frustrada de unir o melhor de A Garota no Trem e de Garota Exemplar. Flynn colocou luz sobre um caminho por onde muitos autores têm tentado andar. E muitos têm se perdido nele. É muito perigoso ter a pretensão de unir duas obras tão extraordinárias. Darcey Bell tem uma boa escrita, sabe desenvolver bem os cenários e explicar com clareza os fatos, mas se perdeu numa história que não soube contar.
site: https://criticaeublog.wordpress.com/