@literatoando 26/08/2020com erros e acertos segue drauzio...A trilogia do cárcere, do doutor Drauzio Varella, encerra seu ciclo falando sobre a penitenciária feminina na qual foi voluntário por muitos anos. Semelhante aos outros dois livros, possui uma estrutura que se inicia relatando as condições físicas do ambiente prisional, seguido da organização interna e, por fim, contando as histórias pessoais de algumas das mulheres encarceradas. O encarceramento, em minha opinião, é um método punitivista que claramente não soluciona problema algum, na verdade, gera muitos outros. Por isso, ler sobre essa temática é muito importante para mim, para compreender mais como ele funciona na prática e ter ainda mais certeza do que acredito ser o caminho sensato: o do abolicionismo penal.
O início da leitura foi difícil para mim, porque o autor faz muitas comparações, algumas que considerei desnecessárias, entre a penitenciária feminina e masculina. Existem momentos em que essas comparações são interessantíssimas e se fazem necessárias, como por exemplo quando vai falar sobre o PCC, mas em outros reforçam estereótipos sexistas, como quando Drauzio afirma que as cadeias masculinas são mais calmas pelo fato das mulheres produzirem um ?falatório ininterrupto?. Para mim, isso evidencia mais um grave processo de silenciamento dos homens, em grande maioria negros, aprisionados, ao invés de crer no falacioso estereótipo de que as mulheres são todas faladeiras. Foi difícil me desvencilhar do pequeno ranço que criei de cara, mas extremamente importante seguir a leitura, pois além dessa fase passar, o livro traz informações e histórias extremamente relevantes.
Uma diferença crucial entre a penitenciária masculina e feminina ressaltada pelo autor é a solidão e o abandono enfrentado pelas mulheres, em detrimento de uma realidade completamente diferente dos homens. (Card 1) Tem narrativas muito pesadas relacionadas a abandono, já que muitas vezes as mulheres encarceradas recebem um pé na bunda de homens que as puseram na situação em que estão, deixando apenas a destruição psicológica, esta difícil de superar. Outro tipo de perda comum às mulheres que são aprisionadas é a do convívio com os filhos. O autor relata que a grande maioria delas tem mais de um filho e passam pela dor de não ter mais contato com eles, que são muitas vezes espalhados pelas casas dos parentes, podendo passar anos sem vê-los. (Card 2) Sobre as mulheres que têm filhos dentro da penitenciária, Varella fala pouco, principalmente se compararmos ao livro ?Presos que Menstruam? da autora Nana Queiroz e tem resenha por aqui.
Aspecto importante que o livro aborda e com propriedade, já que Drauzio é médico, são as questões de saúde pública. Tanto ao tratar sobre gravidez na adolescência (Card 3), quanto do uso de drogas o autor é implacável, trazendo visões interessantes dos problemas sociais que as causam, muito além do senso comum que põe a culpa na mulher e afirma que se não se protegeu foi porque não quis. A respeito das drogas, relata os efeitos ocasionados pelo uso dos entorpecentes mais populares na penitenciária com propriedade médica e pelos anos lidando com usuários, trazendo estudos sobre o vício, bem como o poder aditivo que causam e as consequências da abstinência. (Card 4) Pelo fato destas mulheres, que são usuárias, estarem encarceradas e o tratamento requerer o distanciamento da droga e das pessoas que possam influenciar os abstinentes, é quase impossível se livrar dos vícios na prisão, por motivos óbvios.
O trabalho dentro do cárcere é uma temática trazida pelo autor, porém ao falar sobre ele, embora seja importante, fiquei me questionando sobre o porquê de não haver as críticas a esse sistema também, já que os empregadores que contratam as oficinas de mulheres encarceradas não arcam com encargos trabalhistas garantidos por lei, o que é praticamente trabalho escravo. Por que não remunerar com um salário mínimo? Claro que essa estratégia foi utilizada para atrair empregadores, mas é justa? Elas não são cidadãs como todos nós? Cabe refletir, principalmente quando vemos os relatos de desumanidades, comandadas pelo próprio Estado, no tratamento dessas mulheres.
As contradições sociais são evidenciadas no decorrer da obra (Card 5). O autor tece críticas a respeito da superlotação das penitenciárias e explica detalhadamente o funcionamento e organização do mercado interno comandado pelo PCC, como ele contribui para a pacificação do ambiente prisional e essa é uma das partes mais interessantes do livro. (Card 6) Neste sentido, aborda o nascimento, os objetivos, as características, a organização hierárquica e econômica, as regras, as benesses e os prejuízos de participar dessa organização que movimenta MUITO dinheiro. Ao falar sobre o sistema prisional feminino, o autor relata a predominância de relacionamentos amorosos entre as detentas, destacando, inclusive, que as relações homoafetivas, dentro da cadeia, são comuns e a homofobia é repreendida, tendo até categorias específicas utilizadas pelas aprisionadas para classificar as mulheres lésbicas e bissexuais lá dentro, que o autor dedica um trecho considerável para explicar (Card 7).
O abuso sexual e as violências de todas as formas ganham destaque no livro também. Sempre contemplado por relatos reais, Drauzio narra histórias em que a violência gera traumas e consequências que produz impacto no futuro das vítimas. Passando por transtornos que vão desde a ideação suicida a abortos inseguros e situações de quase morte. Estes trechos são cheios de gatilhos e não recomendo que leiam sem que tomem cuidado com o impacto que as histórias dessas mulheres podem te causar.
Para finalizar, no epílogo, o autor tenta trazer com mais solidez suas opiniões e críticas. Porém, na minha concepção, existem pontos ESSENCIAIS para a discussão a respeito do encarceramento em massa que são deixados de lado, tanto nessa parte final, quanto no desenvolvimento. O primeiro deles é o fato de que as mulheres negras são as mais encarceradas. Não falar sobre isso durante todo o livro simplifica demais a análise sociológica que é feita utilizando os fatos abordados. O racismo e como ele está introjetado na estrutura do sistema que nos rege - capitalismo - é um fator importantíssimo para discutirmos a respeito do sistema prisional brasileiro e uma única frase de 4 linhas não é suficiente para contemplar o assunto. O segundo ponto é que, embora o autor traga tópicos e dados ao final do livro que geram reflexão nos leitores, eu senti que não abarcou a complexidade estrutural do problema como deveria, fazendo análises sociohistóricas que discordo por serem muito rasas. Ele não busca produzir soluções, talvez evidenciar os problemas, e se contém quando não deveria, reproduzindo algumas vezes o sexismo e racismo entranhados na nossa sociedade em algumas descrições durante o livro. Superando estes pontos, me ajudou a refletir sobre as condições desumanas que a realidade impõe às pessoas que estão em situação de cárcere. 4 estrelas de 5.