Craotchky 09/06/2024"Há um modo de ver que arrepia" • TEXTO UM
Em Um sopro de vida, assim como acontece em A hora da estrela (dois livros desenvolvidos no mesmo período), Clarice escreve sobre um Autor que cria uma personagem, Ângela Pralini. Nota-se então uma tríade de camadas narrativas – Clarice, Autor, personagem – que, entretanto, compartilham algo em comum: a onipresença, em maior ou menor grau, da voz da autora.
Ângela, por exemplo, assim como Clarice: tem um cão chamado Ulisses; escreve crônicas para jornais (crônicas que considera medíocres); pinta quadros que são batizados com os mesmos nomes que quadros pintados pela própria Clarice; e como se não bastasse, ainda se diz autora de um livro intitulado A cidade sitiada, além de um conto, O ovo e a galinha!
Na parte do Autor, a voz de Clarice aparece sobretudo ao tecer reflexões acerca do processo de escrita (por exemplo: o Autor afirma que
"dados e fatos me chateiam". Como Clarice, ele parece preferir escrever sensações, pensamentos...). Eis um dos principais temas da obra: o ato de escrever. O Autor diz:
"... eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma." Entre outro tópicos, Um sopro de vida aborda Deus, a vida, a morte... e como sempre: a procura da própria coisa.
Penso que Um sopro de vida é desaconselhável para não iniciados no universo clariceano. A obra traz uma dinâmica inédita nos livros da autora: uma espécie de diálogo entre o Autor e Ângela (ainda que o próprio autor se pergunte:
"Isto afinal é um diálogo ou um duplo diário?"), que na maior parte do tempo intercalam suas vozes ao mesmo tempo em que as mesclam em uma simbiose. É preciso não esquecer também que todas as vozes se confundem com Clarice. Aparentemente, em Um sopro de vida, a fronteira que separava criadora e criaturas estava extremamente tênue. Basta considerar os tantos elementos biográficos que são atribuídos a Ângela (vide parágrafo segundo).
É algo tocante ler tudo que envolve o tema da morte, que será mais contemplado na parte final do livro. Esse tema ganha uma nova dimensão considerando que este livro foi escrito nos últimos anos de vida da autora. Clarice parece pretender a salvação ou eternidade, por meio do livro. Na primeira página já lemos:
"Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida."
De fato, é bastante conhecida a ideia de que a literatura salva; essa ideia é associada sobretudo ao leitor(a). Será que a literatura salva também quem escreve? Talvez essa incerteza habitasse a autora. Já nas páginas derradeiras, ela registra:
"Deve haver um modo de não se morrer, só que ainda não descobri." Ao não saber não morrer, Clarice definitivamente encontrava-se despreparada para seu último sopro:
"Me ensinem como é que se morre. Eu não sei."
No entanto eu sei que, bem lá no âmago da sua busca, Clarice, nas bordas de seu coração, ainda residia a esperança de que o sopro final não determine a impossibilidade de alguma outra vida (eu queria muito acreditar):
"Nunca se esquecer, quando se tem uma dor, que a dor passará: nunca se esquecer que, quando se morre, a morte passará. Não se morre eternamente."
• TEXTO DOIS
Claricefique-se.
Experimente não se conformar com a distração cotidiana;
Experimente não ser cúmplice das trivialidades do dia;
Experimente não fugir das palavras de poetas;
Experimente não suspeitar das confissões da alma;
Experimente suportar o desassossego até se afeiçoar a ele;
Experimente saborear as emanações dos ecos de si;
Experimente ser capaz de estremecer diante do profundo Ser;
Experimente não almejar ser completamente literal;
Experimente, quando muito, apenas se consolar com o coexistir consigo.
Experimente, por fim, temer a plenitude, pois ela, uma vez alcançada, é ponto de inércia.