Procyon 17/04/2022
Oréstia ? Resenha
O livro é o segundo volume da série antológica das principais obras e dos principais dramaturgos gregos (Ésquilo, Sófocles e Eurípedes), A Tragédia Grega, traduzida pelo helenista brasileiro Mário da Gama Kury e organizado pela editora Zahar. O tema da Oréstia, do dramaturgo Ésquilo ? o mais arcaico dos três grandes poetas gregos e o criador da tragédia em sua forma completa ?, que trata da maldição dos filhos dos Atridas, descendentes de Pêlops, era tido como um dos temas preferidos do público e dos poetas helenos. As notas e a introdução do tradutor fornecem alguns argumentos e antecedentes de cada peça, dando ao leitor um embasamento necessário para leitura do volume.
?Agamêmnon? é a primeira peça da trilogia e baseia-se no episódio da lenda dos atridas (isto é, dos descendentes de Atreu, filho de Pêlops, o herói epônimo do Peloponeso, que herdou uma maldição de seu pai, junto de seu irmão, Tiestes, que disputavam o trono de Micenas). Na volta vitoriosa do herói ? que era comandante de Argos e de toda a coalizão grega contra a cidade de Troia (narrada por Homero, na Ilíada) ?, após ter vingado a honra de seu irmão Menelau, rei de Micenas e marido de Helena ? que havia fugido com Páris ?, a esposa de Agamêmnon, Clitemnestra (e por sinal irmã de Helena), por sua vez, também o trai, arquitetando um plano o assassinato do marido com o amante Egisto ? filho de Tiestes e primo de Agamêmnon.
Nas ?Coéforas?, Orestes e Electra, filhos de Agamêmnon, vingam sua morte, matando a mãe e seu amante. Cometido o matricídio, a ira de Clitemnestra é materializada nas Fúrias (as Eríneas que atormentavam os assassinos do próprio sangue). Vistas somente por Orestes, são as responsáveis por sua loucura nas ?Eumênides?. Nesta última peça, Orestes é julgado pelo seu crime pela Deusa Atenas que proclama que o tribunal ? o primeiro a julgar um crime de homicídio ? fica instituído para sempre.
Esquilo transmite genialidade na imensidão da tradição grega através desta trilogia, que se inicia de modo mais sombrio e perturbador, até um modo mais brando, solene, mas sobretudo triunfal na prevalência da justiça e da compaixão. O poeta havia participado da batalha greco-persas de Maratona e Salamina, voltando de lá com uma conjectura da democracia ateniense um pouco diferente (o que se reflete em um texto cheio de jogos de palavras, bem como conflito entre o novo e o antigo).
Goethe, em uma carta ao filosofo Humboldt (fundador da Universidade de Berlim), diz que Agamêmnon é a ?obra-prima das obras-primas?. Contemporâneo de Ésquilo, e, de certa forma, seu aprendiz, outro grande poeta clássico, Sófocles, dizia que seu antecessor ?compunha boa poesia, mas inconscientemente?, tinha um fundo de pura inspiração e forma de pura reflexão. Não tiro a razão de Sófocles: Ésquilo compõe versos em geral cuidadosíssimos e de uma perspicácia tremenda. Ele usa, diversas vezes, jogos de palavras e recursos de duplo sentido, e preserva a importância, também, tanto das palavras quanto do silêncio (as oposições são bastante frequentes por aqui).
Os rudimentos da lenda dos Atridas já eram conhecidas por Homero, do quem Ésquilo rebaixou sua própria obra, que considerava, ?meras migalhas do banquete homérico?. Esquilo também dava grande importância ao coro (de modo que l título das últimas duas peças advém do coro: Coéforas, onde o coro é composto por escravas; e Eumênides, onde são as Fúrias, que posteriormente se tornam as Eumênides, as benévolas).
Como já antecipado, Ésquilo escreve em um momento de um processo transitório, de reformas. Aqui, portanto, tomam presença as oposições: as trevas e Sol, o conflito dos deuses antigos com os novos ? no que confere a representação de uma mudança nas noções de justiça, além de alterações nas estruturas de poder (da antiga justiça como vingança da ?lei de talião?, o ?olho por olho, dente por dente?, ao triunfo de uma civilização mais justa e democrática).
É também uma investigação da natureza psicológica do homem, o remorso representado pela Eríneas, ? que reivindicam a ordem da estrutura de uma realidade mais antiga que os deuses. A intervenção de Atena sinaliza a criação de uma realidade mais humana e subjetiva. A absolvição de Orestes simboliza a redenção na tradição de crimes cometidos pela família dos atridas (que romperam com a regra da ?hybris?, de equilíbrio). As Fúrias agora se tornam redentoras, as Eumênides, protetoras da ?pólis? (da cidade), da organização social, recebendo libações por terem se transmutado para um novo senso de justiça. A dimensão psicológica, jurídica e política tornam esta uma obra maravilhosa, que se conclui na peça triunfal da Eumênides e culmina no tal ?voto de Minerva? (decisivo para a absolvição de Orestes), o que demonstra, desta forma, a prevalência da sabedoria.