Erick 23/03/2021sobre a filosofia crítica A Crítica da Razão Pura possui uma tarefa bastante pontual na história da filosofia, a saber, demonstrar de modo sistemático e arquitetônico a constituição do conhecimento nos seus aspectos subjetivo e objetivo. Essa tarefa assume um caráter árido se atentarmos para a diversidade de opiniões que se debatiam na consecução da tarefa no limiar do século XVIII: desde o racionalismo clássico, que permaneceu presente no cenário alemão nas figuras de Leibniz e, principalmente, Wolff, para quem a importância da dedução lógica no encadeamento dos argumentos preconizava uma primazia do entendimento como faculdade primordial. Em oposição ao racionalismo, o empirismo inglês preconizava o que Kant denomina ‘fisiologia do entendimento’, quer dizer, concedia uma certa primazia aos sentidos, impressões e à experiência na formação dos conhecimentos. Locke depois Hume aparecem como grandes representantes dessa teoria do conhecimento.
Nesse sentido, a filosofia transcendental de Kant surge como uma reflexão sobre os pressupostos do conhecimento das coisas do mundo, ou melhor, como podemos obter um conhecimento que se reporte de modo a priori aos objetos da experiência. Desse modo, a filosofia crítica de Kant aparece como uma terceira via na reflexão sobre a possibilidade dos conhecimentos e, portanto, da própria ciência, que no século XVIII, assumia uma postura crítica em relação às demais esferas de valor da sociedade europeia – religião, política, arte etc. O esclarecimento desse período tem como uma de suas propriedades esse caráter crítico, que significa pôr o conhecimento científico pari passu aos demais saberes.
Para que a ciência seja erigida sob pressupostos sólidos, é preciso ir a fundo na tarefa de análise desses mesmos, o que significa adotar uma postura crítica tanto em relação ao idealismo quanto ao empirismo. Não se pode, por exemplo, considerar qualquer aspecto empírico, como faziam os físicos matemáticos, no tratamento de conceitos como o espaço e o tempo, assunto abordado na ‘Estética transcendental’. Como também não se pode deixar de considerar os aspectos puro e a priori das categorias do entendimento, tema da ‘Analítica transcendental’.
Ora, como garantir esse caráter puro e a priori das categorias do entendimento? Responder tal questão é uma das tarefas da “Dedução metafísica dos conceitos”. Essa questão carrega, como pano de fundo, o próprio fundamento da filosofia transcendental: como um conceito relaciona-se, de modo puro e a priori, aos objetos da experiência? Quais as condições de possibilidade dessa referência que garantem a validade objetiva dos conhecimentos?
Um conceito, para possuir um conteúdo, necessita possuir a propriedade de reportar-se a priori aos objetos da experiência possível, quer dizer, à intuição, na medida em que esta faculdade é responsável pela recepção do diverso das representações. Um conceito sem essa propriedade seria “apenas a forma lógica de um conceito, mas não o próprio conceito pelo qual algo seria pensado” (p.129). A realidade objetiva dos conceitos puros, portanto, reside nessa propriedade de reportar-se a uma experiência possível, embora eles mesmo nada possuam de empíricos, mas garantem a possibilidade da experiência. Ora, qual o fundamento dessa propriedade? Afinal, como um objeto da representação torna-se um conceito?
Para pensarmos tal questão, diz Kant, “devemos considerar as fontes subjetivas que constituem os fundamentos a priori da possibilidade da experiência na sua natureza transcendental” (p.133). É a tripla síntese que garante, desse modo, tais fundamentos a priori: a apreensão do diverso; a reprodução na imaginação; e a recognição no conceito. “Essas três sínteses nos conduzem às três fontes subjetivas do conhecimento que tornam possível o entendimento e, mediante este, toda a experiência considerada como um produto empírico do entendimento” (p.134).
Diz Kant: “A primeira coisa que tem de ser dada a priori, com vistas ao conhecimento de todos os objetos, é o diverso da intuição pura” (p.109). A apreensão do diverso está ligada a receptividade da sensibilidade e possibilita a formação das representações (ou seja, recepção do múltiplo); A dedução dos conceitos puros do entendimento apresenta tal condição formal nos seguintes termos: “Venham de onde vierem, nossas representações, como fenômenos, pertencem como modificações do espírito ao sentido interno, no qual devem ser conjuntamente ordenados, ligados e postos em relação” (p.135-36). Ora, apenas conseguimos ordenar representações que estejam no interior do tempo, assim como a ligação dessas mesmas representações ocorre na sucessividade dos instantes, das impressões. Ordenação, ligação e relação já são funções da síntese em contato com as formas puras da sensibilidade. Como já demonstrara Kant na “Estética transcendental”, tempo e espaço são formas puras da intuição ‘a priori’ e condições de possibilidade da experiência. Portanto, o sujeito transcendental apreende tudo no tempo.
O que aparece no mundo nos aparece como diverso, múltiplo e variado, sendo necessária essa apreensão, que é realizada pela intuição. O múltiplo da intuição recebido nas formas da sensibilidade pode ser percebido como múltiplo somente se um ato de síntese é adicionado à receptividade. Sem essa síntese da apreensão, os objetos nos apareceriam disformes, sem coerência, o que significa que nem mesmo em objetos de representação se constituiriam, mas apenas em aparições incompreensíveis para nossa cognição.
Ainda em relação a esse primeiro passo, é necessário garantir o caráter ‘a priori’ da apreensão, “isto é, relativamente às representações que não são empíricas”. Para que a síntese seja efetivamente pura, apenas tais elementos devem operar na constituição das categorias, pois são estas que possibilitarão a experiência conjuntamente às formas puras da sensibilidade.
O segundo passo da tripla síntese é a síntese desse diverso por meio da imaginação, que ainda não fornece um conhecimento. O múltiplo recebido deve ser ligado, representado numa imagem, já que o conhecimento é o todo das representações ligadas entre si de modo sistemático. Diz Kant: “deve haver qualquer coisa que torne possível esta reprodução dos fenômenos, servindo de princípio a priori a uma unidade sintética e necessária dos fenômenos” (p.139). De nada adiantaria a apreensão do diverso se este não pudesse ser reproduzido na imaginação, o que significa que são duas operações intrinsecamente associadas, pois, por exemplo, para que avancemos na contagem de um a dez, é necessário que passemos de unidade a unidade, acrescentando uma à outra num processo contínuo de reprodução. Não podemos esquecer no 4 que já passamos por 1,2 e 3, e assim por diante.
Kant diz que “a síntese reprodutiva da imaginação pertence aos atos transcendentais do espírito, pois ela exprime o princípio transcendental da possibilidade de todos os conhecimentos em geral” (p. 140-41). Se por um lado, a apreensão do diverso torna possível a síntese das representações na intuição, a síntese transcendental da imaginação torna possível a própria experiência, na medida em que as conexões na reprodução ligam as representações anteriormente apreendidas como múltiplo. Esta regularidade é fundamental na reprodução na imaginação, tanto nas ciências como no cotidiano. Um dos exemplos que Kant dá em relação a este último é “se uma certa palavra fosse atribuída ora a esta, ora àquela coisa, ou se precisamente a mesma coisa fosse designada ora de uma maneira, ora de outra” (p.138). Não seria possível a organização da linguagem numa gramática se apenas houvesse palavras equívocas. É necessária uma certa regularidade semântica para que qualquer sintaxe seja construída sobre ela.
Na terceira seção da dedução A, a imaginação aparece caracterizada como produtora e é denominada função transcendental da imaginação. Diz Kant: “A imaginação é, portanto, também uma faculdade de síntese a priori e é por isso que lhe damos o nome de imaginação produtora e, na medida em que, relativamente a todo o diverso do fenômeno, não tem outro fim que não seja a unidade necessária na síntese desse fenômeno” (p.165). Essa duplicidade da imaginação transcendental, que aparece ora como reprodutiva ora como produtiva é constitutiva dessa faculdade na sua característica de mediadora da intuição com o entendimento.
O que significa que a associação dos fenômenos na imaginação não é uma mera consequência do hábito ou da crença, como queria Hume, mas é uma necessidade sintética da faculdade transcendental da imaginação, que opera em intrínseca relação com a sensibilidade e suas formas puras – espaço e tempo – e com o entendimento e seus conceitos puros – as categorias.
O terceiro passo na síntese do conhecimento é o reconhecimento no conceito. Diz Kant: “Os conceitos que dão unidade a essa síntese pura, e que consistem tão somente na representação dessa unidade sintética necessária, constituem a terceira coisa necessária para o conhecimento de um objeto apresentado e residem no entendimento” (p.110). Isso devido ao fato de na sensibilidade os objetos serem intuídos como representações, e no entendimento eles serem pensados por meio dos conceitos. O conceito, portantoé a própria “consciência da unidade de um ato de síntese”.
É necessário notarmos o duplo sentido que a noção de “conceito” pode assumir na filosofia kantiana. Por um lado, o conceito é a consciência da unidade da síntese de um múltiplo sensível. Por outro, é um conceito discursivo, uma representação universal ou refletida de um ato de síntese que era comum a muitas representações particulares, e assim as tornava possível para nós reconhecê-las enquanto identidade genérica. Essa unidade imanente ao conceito seria impossível sem a unidade formal da própria consciência que sintetiza o diverso das representações e os reproduz numa imagem. De fato, essa unidade da regra é a garantia de que os nossos conhecimentos se constituem de maneira a priori, pois a relação de todo o conhecimento ao seu objeto comporta algo de necessário. Assim, ainda na dedução A, Kant recorre para um exemplo geométrico para enfatizar a importância da função de unidade realizada pelo conceito enquanto regra: “Pensamos um triângulo como objeto quando temos consciência da composição de três linhas rectas de acordo com uma regra, segundo a qual, uma tal intuição pode ser sempre representada. Ora, esta unidade da regra determina todo o diverso e limita-o a condições que tornam possível a unidade sintética da apercepção, e o conceito dessa unidade é a representação do objecto=X, que eu penso mediante predicados de um triângulo”(p. 145).
Para que conheçamos qualquer objeto em geral, é preciso não apenas que ele seja apreendido na intuição e reproduzido na imaginação, mas é necessário garantir a unidade desse objeto numa consciência una. Sem essa unidade conferida pela consciência “haveria no estado actual uma nova representação, que não pertenceria ao ato pelo qual devia ser, pouco a pouco, produzida e o diverso dessa representação não formaria um todo” (p.142). De fato, o que ocorreria nessa hipótese é que eu é que seria pensado pelas representações – a subjetividade seria um mero resultado do jogo das representações -, e não o inverso, eu pensando as representações através de minha consciência una. A reunião do múltiplo num conceito por meio das sínteses anteriores é que requer, para ser sintetizada, uma unidade originária, a apercepção transcendental; esta é “o princípio supremo de todo conhecimento”, que concede unidade ao conhecimento por meio da ligação das representações.
Ao abordar essa relação necessária entre os conceitos e objetos tratada acima, ainda no tópico sobre a recognição do conceito da dedução A, Kant diz: “o conceito de corpo, na percepção de algo exterior a nós, torna necessária a representação da extensão(…) Toda necessidade tem sempre por fundamento uma condição transcendental” (p.146). Tal condição formal da consciência é a unidade que garante todas as demais unidades conceituais, é a apercepção transcendental. Ainda no mesmo sentido: “Deve haver uma condição, que preceda toda experiência e torne essa mesma possível, a qual deve tornar válida um tal pressuposto transcendental” (p.147). A unidade dessa consciência deve preceder toda a intuição do múltiplo e mesmo é ela que garante a unidade do conceito, pois “mesmo a unidade objetiva mais pura, a dos conceitos a priori (espaço e tempo) só é possível pela relação das intuições a essa apercepção” (p.148). Ela é, portanto, condição de possibilidade de toda experiência e princípio máximo do conhecimento.
Esta consciência é considerada originária pois é pura e imutável, além de preceder todo caráter empírico das representações, e é transcendental pois condiciona toda a experiência possível. Diz Kant: “A consciência originária e necessária da identidade de si mesmo é, portanto, ao mesmo tempo, uma consciência de uma unidade, igualmente necessária, da síntese de todos os fenômenos segundo conceitos, isto é, segundo regras, que não só os tornam necessariamente reprodutíveis, mas determinam assim, também, um objeto à sua intuição, isto é, o conceito de qualquer coisa onde se encadeia necessariamente” (p.149).
A unidade transcendental da autoconsciência opera como condição objetiva para a constituição da representação “eu penso”, assim como designa a possibilidade dos conhecimentos a priori que dela se seguem. Diz Kant, na dedução B: “só porque posso ligar numa consciência um diverso de representações dadas, posso obter por mim próprio a representação da identidade da consciência nestas representações” (pp. 132-33). Quer dizer, é por conta da ligação do diverso das representações que posso pensar a própria identidade que me constitui como representação. O conceito de ligação inclui em si mesmo: a) o diverso das representações; b) a sua síntese; e c) a unidade originária sintética da apercepção. Essa noção da ligação como análoga ao ato de síntese, parece-nos, ficou mais explícita na dedução B, já que esta dedução transforma esta ligação num ato da espontaneidade do entendimento, e não mais exclusivamente uma síntese da imaginação transcendental.