sr. felix 14/03/2022
Qual o seu deus?
Deuses Americanos é considerada a "magnum opus" do escritor britânico Neil Gaiman. A obra foi inicialmente concebida como livro, depois conduzida a adaptação cinematográfica em série, pela Amazon, e por fim ganhou o formato dos quadrinhos. E é especialmente deste último que falo.
Neste primeiro volume da HQ, intitulado Sombras, os deuses antigos, aparentemente sob o comando do velho Wednesday (Odin), estão desesperados e prestes a deixar de existir. Por quê? Bom, simplesmente pelo fato de que foram substituídos. Pois se um deus subsiste pela fé dos seus fiéis, quando abandonado o que lhe resta é a aniquilação. Aqui, enfrentando os sentimentos tão particularmente humano chamados angústia e desespero, os deuses decidem travar um conflito com sua nova concorrência: os novos deuses.
Enquanto os antigos adoravam o deus da chuva, o deus do trovão, o deus da colheita, o deus do sol e o deus de qualquer coisa que fosse necessária a vida humana, hoje, em tempos hodiernos, as pessoas adoram o deus do sexo, o deus do dinheiro, o deus da tecnologia, o deus da estética, em suma: o panteão dos deuses que promovem prazer e distração.
Na história, Shadow Moon, um ex-presidiário, é comissionado por Wednesday a fazer parte da empreitada tragicômica dos deuses inveterados. Sem expectativa pro futuro, tudo o que lhe resta fora das grades é Laura, sua mulher. Mas não demora muito até Shadow descobrir que ela morreu tragicamente num acidente. Logo, sem rumo e desamparado, ele decide aceitar a proposta ainda indefinida de Wednesday. A partir de então, sonhos e realidade se fundem, deuses e criaturas mitológicas do passado vagueiam pelas cidades modernas buscando mancomunar-se, e até o fim deste primeiro volume a batalha não acontece.
A bem da verdade, o interessante de fato neste trabalho não é sua história, mas sua proposição. A premissa da obra é profunda e indissociavelmente teológica. A ideia é a seguinte: tudo aquilo que é adorado acaba se tornando uma divindade. E, desta forma, como "coisas" tornam-se deuses, gastar tempo com eles é o equivalente a adorá-los. Tempo, aqui, é sacrifício.
Depositar nosso afeto, nosso amor, nosso desejo e nossa esperança, consciente ou inconscientemente, tornou-se uma nova metodologia de holocausto. Se a obsoleta forma de oferendar dava-se pela imolação de animais ou alimentos ? quando não de filhos ?, agora nós, seres pós-modernos, apresentamos nosso tempo e nossa afeição diante dos altares secularizados.
Tendo isto em vista, posso livremente inquerir: qual o seu deus?