Gabriel 13/09/2022
Encontrei Turguêniev em 4 situações diferentes; e ele me entregou 4 experiências diferentes, porém igualmente magníficas. A primeira vez foi com 2 contos presentes numa coletânea da Editora 34 intitulada "Clássicos do Conto Russo", ali a paixão começou; depois li "Primeiro Amor" com uma amiga (adorei); cheguei ao seu cânone há quase 2 anos? "Pais e Filhos" me arrebatou, passei horas debaixo das cobertas após terminar ele, mastigando aquilo que acabara de ler (abrindo parênteses para dizer que devo a resenha desses últimos dois? uma hora elas aparecem por aqui). Mas com esse livro, seu primeiro publicado, firmou-se como um dos meus escritores favoritos. "Memórias de um caçador" vem, para mim, como a obra prima de Turguêniev (acima até de "Pais e Filhos", na minha humilde opinião).
Começarei? pelo começo. Esse magnânimo livro foi publicado em sua totalidade no ano de 1952, após passar pelas mãos de um censor do czar um pouco desleixado e conhecido de Turguêniev. O censor não percebeu, entretanto, que havia liberado uma bomba-relógio social ser publicada. A obra de Turguêniev, com uma maestria até então nunca vista, denunciava a situação em que os mujiques russos se encontravam; e, pioneiramente, dava voz e vez aos servos russos. Porém, essa crítica vinha embrulhada em narrativas de tirar o fôlego ? a beleza das descrições da natureza que o autor aqui faz é algo único na literatura universal, de uma poesia e intimidade que só Ivan conseguiu retratar. Ao ler essa obra, você é transportado (sem qualquer exagero da minha parte) para as estepes russas; a algum bar numa pacata cidade; a algum diálogo com o bufão da província; às florestas frondosas de Oriol, sentindo o vento gélido e o sol da primavera na pele. "Memórias de um caçador" é o mais fiel e profundo retrato da Rússia que já tive o prazer de destrinchar, social e esteticamente. Turguêniev conseguiu alcançar algo que todos os escritores sempre almejaram: mesclar a poesia à boa história; a crítica ao entretenimento; a beleza à denúncia; a estética literária ao profundo pensar.
Com contos que relatavam a hipocrisia do clero e da nobreza russa, Turguêniev lançou a Rússia ao mundo: foi o primeiro escritor russo a ser amplamente traduzido e fomentado nos círculos europeus. E em sua casa não foi diferente? um mês após o lançamento de seu livro, chega a sentença: prisão domiciliar. O livro causou um furor tão grande nos círculos intelectuais que não poderia ser de outra maneira. Tido como um marco fundamental na luta pela emancipação dos mujiques de 1861, "Memórias de um caçador" é comparado, pelo escritor Henry James, à obra "Cabana do Pai Tomás", por sua importância e eloquência. Também é Henry James que, na ocasião do recebimento do título, na Universidade de Oxford, de doutor honoris causa de Turguêniev, em 1879, o chama de "O paladino da liberdade", assim como "the novelist's novelist"... e James não poderia estar mais certo. Turguêniev escreveu de uma maneira viciante e apaixonante para quem o lê.
Aqui, o mujique, o simples camponês, ganha uma imagem totalmente diferente daquela difundida pelos altos círculos vigentes na época. Vemos um povo com sentimentos, sabedoria fundamental ao país, espírito nobre e humano (afinal, todos somos falhos), e, acima de tudo, digno. As altas e autoritárias tarifas e punições impostas aos servos são frequentemente criticadas por Turguêniev, que não poupa ninguém. Minhas palavras não são suficientes para expressar a inexpressível grandeza desta obra, então tomo as palavras de alguns grandes como minhas. Em carta, Joseph Conrad definiu "Memórias" como "paisagens maravilhosas povoadas por figuras inesquecíveis"; Tolstói, em seu diário, disse: "li as Memórias de um caçador de Turguêniev, e como é difícil escrever depois dele".
Também recomendo ler este livro com um bloquinho de anotações do lado, pois elas serão inúmeras. Turguêniev cita escritores, pintores, poetas, músicos e personalidades aos montes, mas de uma maneira simples e natural; depois da leitura, você irá querer pesquisar sobre cada um deles.
Das 25 narrativas aqui presentes, 17 viraram favoritas da vida. Mas peço permissão para cometer o crime de me ater a aprofundar apenas uma delas (que não foi minha favorita, mas dá muito pano para manga). O conto em questão se chama "Hamlet do Distrito de Schigrí". Na momento que bati os olhos nesse título, outros tantos vieram à minha mente: "Lady Macbeth do Distrito de Mitzensk", de Leskov (livro que li junto de "Primeiro amor"), "O Rei Lear da estepe", também de Turguêniev? mas, dentre todos esses, o mais latejante foi um texto anexado às edições brasileiras de "Pais e Filhos", intitulado "Hamlet e Dom Quixote". Após finalizar este livro, reli o texto (transcrito de uma palestra) de Turguêniev. Como eu já esperava, o conto e a palestra conversavam em diversas camadas. A principal é de que Turguêniev enxerga Hamlet como alguém egoísta, perscrutador, cético, que despreza a todos, e é, em si próprio, desprezível. Além disso, Hamlet autoflagela-se, sofre por suas próprias mãos:
"Hamlet infringe feridas a si mesmo, se tortura; em suas mãos, há uma espada: a espada de dois gumes da análise. [...] ludibria a si mesmo, se compraz em injuriar-se e, por fim, assassina seu padrasto por acaso". (Hamlet e Dom Quixote, 1860)
Hamlet, segundo o russo, também seria presunçoso, uma pessoa que despreza a massa. Viajou o mundo, mas não conhece sua terra.
"Os Hamlet são rigorosamente inúteis para a massa; não lhe trazem nada, não podem guiá-la a parte alguma, porque eles mesmos não vão a parte alguma. E como guiar quando nem se sabe se existe um solo embaixo dos pés" (Idem)
Esse trecho da palestra vai de acordo com algo que o próprio Hamlet do conto diz para si mesmo:
"Pois é, pois é! Para que você foi se arrastar pelo exterior? Por que não ficou em casa e não estudou a vida que estava a seu redor? Você teria descoberto suas necessidades, seu futuro, e aquilo que chamam de vocação também teria ficado mais clara?" (Memórias de um caçador, pág 343)
Quem não sabe de onde vem, não sabe onde vai.
Este que vos escreve poderia ficar horas, dias, anos falando sobre Turguêniev e seus infinitos meandros, mas me limitarei a este já simbólico texto que escrevi. Só tenho a agradecer pela oportunidade de ler este livro que, ao mesmo tempo, é lindo e afiado; crítico e eterno; um retrato e uma mudança. Encerro minha resenha como Turguêniev encerra sua obra: "adeus, leitor; desejo-lhe prosperidade constante".
"O ar iluminado, o caminho mais visível, o céu mais claro, as nuvens mais brancas, os campos mais verdes. Nas isbás, as lascas ardem com fogo vermelho, atrás de seus portões ouvem-se vozes sonolentas. Enquanto isso, a aurora arde; tiras douradas já se estendem pelo céu, nuvens de vapor se elevam nas ribanceiras; as cotovia cantam sonoramente, sopra o vento matutino, e o rubro sol emerge."
:)