Craotchky 22/02/2023Tenho milhas a percorrer antes de dormir"O que é fazer versos senão confessar que a vida não basta" - Pessoa como Álvaro de Campos.
Um alicate é útil pois serve para alguma coisa, isto é, tem uma finalidade; sua finalidade é a utilidade que ele tem. Nesse contexto, um alicate não esgota em si mesmo a razão da sua existência. O valor do alicate está em sua utilidade. Da mesma forma, o valor de uma caneta está fora dela, neste caso em facultar a alguém a capacidade de registrar algo escrevendo. Uma caneta que não escreve é inútil. O valor de um serrote é cortar. Um serrote que nunca corta algo parece não ser útil, portanto não vale de nada.
Bem, dizem que ser feliz é a principal meta de uma vida. Absolutamente tudo o que cada indivíduo faz todos os dias parece servir a esse fim. Mas para que serve a felicidade? Qual a sua finalidade? Você usa a felicidade para que? Onde reside seu valor? Aparentemente a felicidade vale por si; seu valor não está fora dela, como acontece com o alicate, a caneta e o serrote; a felicidade parece não ser instrumento "para alguma coisa", mas ser ela própria uma finalidade a ser alcançada. Nesse sentido a felicidade é inútil.
E a arte? Onde ela se situa nesse cenário a partir do princípio de utilidade? E a cultura? Será mesmo que apenas aquilo que é indubitavelmente útil tem valor? Eis uma das questões levantadas por Afonso Cruz nessa pequenina mas preciosa fábula distópica moderna, bastante moderna. Nesta sociedade a quantificação numérica presente no sistema econômico capitalista avançou a tal ponto que penetrou no cotidiano da vida e das interações humanas. Coisas comuns passam então a ser mensuradas em cifras. Um beijo é definido pela quantidade de saliva depositada na bochecha de alguém; a intensidade de um grito é descrito pelos decibéis que alcança; o caminho até a casa é apresentado pelo número de passos...
Nesta sociedade em que a figura divina deixou de ser Deus e passou a ser Mamon, (termo de origem bíblica que representa riqueza e posses materiais) a noção de utilidade ganha uma definição muito particular: algo útil se define especialmente como algo que se traduz em valores monetários, alimentando o sistema financeiro social. Inútil é tudo aquilo que não se deixa converter em participação econômica, tendo assim valor de mercado desprezível, incluindo possíveis pensamentos e comportamentos.
Nesse modelo de vida utilitarista extrema, categorias artísticas como pintores, bailarinos, atores e poetas (espécimes chamados de inutilistas), por exercerem atividades que não produzem bens materiais e em consequência não alimentam a máquina econômica, são vendidos como animais de estimação. Além disso, tudo é monetizado através de emblemas de empresas que patrocinam os mais variados artigos como roupas, lençóis, toalhas de mesa, facas, pantufas. Afinal, em uma sociedade assim, deve-se monetizar tudo o que for possível. Até mesmo a linguagem é afetada, tornando-se racionalizada, precisa, exata, pragmática, objetiva, rigorosamente numérica, desprovida de figuras de linguagem, metáforas, eufemismos, imaginação.
Lógica de produção e consumo, cálculo de eficiência, monetização da vida, sociedade excessivamente materialista, o papel da arte; estes são alguns elementos trabalhados pelo autor; e com muita suavidade, acredite. Este livro de Afonso Cruz é uma pequena joia. A obra se equilibra entre sua leveza e suas provocações reflexivas de cunho questionador. Os capítulos extremamente curtos (uma ou duas páginas) e a narrativa muito fluída permite a leitura completa em pouco tempo (em verdade li essa novela em poucas horas).