Esther 29/07/2017DecepcionadaTalvez o meu maior problema com este livro seja o fato de que eu não tenha entendido a princípio a que ele se propunha. Escrito por uma médica atuante na área de Cuidados Paliativos, imaginei que o livro fosse voltado a um público mais "acostumado" a presenciar e falar da morte, como por exemplo os profissionais da área da saúde. Esse sentimento ainda ficou reforçado nos primeiros capítulos do livro quando se fala sobre quem cuida de quem morre, ainda que tenha ficado claro que mesmo ali o texto não se dedicava exclusivamente aos profissionais da área mas a todos que cuidam de pacientes terminais, incluindo a própria família.
A partir do sexto capítulo (cuidados paliativos - o que são?, O qual ironicamente explica muito superficialmente sobre o mesmo) meus problemas com o livro começaram, indo terminar apenas nos últimos, quando senti que o livro voltava a ser o que eu esperava. Para quem não sabe, a ideia desse livro surgiu após uma palestra da autora no TEDxFMUSP, a qual é muito boa aliás. Porém, o conteúdo talvez ficasse melhor apenas no formato de uma palestra e não de um livro onde parece que a autora tentou esticar o assunto preenchendo o meio do livro com algumas frases bem clichês de auto ajuda e algumas citações sobre a morte (algumas até muito boas como citarei ao final).
O primeiro ponto que achei questionável foi o distanciamento continuamente reforçado entre a autora e os médicos. Em frases como "(...) e eu seguia o curso cada vez mais estranha." - pág 20 - ou "os médicos profetizam: não há nada mais a fazer. Mas eu descobri que isso não é verdade." - pag46 - e em muitas outras espalhadas pelo livro. Acho isso um pouco irônico visto que (1) a própria autora é médica, (2) embora as faculdades ainda não tenham disciplinas específicas de cuidados paliativos, o assunto tem sido cada vez mais discutido em congressos, ligas acadêmicas, simpósios, (3) nenhum médico ou qualquer outro profissional da saúde fica tranquilo ao saber que foram esgotadas as possibilidades terapêuticas para um paciente e sempre que isso ocorre, se não temos conhecimento suficiente para ajudar o paciente na hora da morte, o encaminhamos para alguém que tenha, de modo que o mesmo não fique desamparado. Estou ciente de que isso não é sempre possível, principalmente considerando o estado do nosso sistema de saúde, mas não concordo com a forma como o assunto foi abordado no livro como se os médicos não conversassem nunca sobre a morte dentro da faculdade ou dos hospitais. Para aqueles que discordarem dizendo que não foi bem isso que o livro tentou passar acerca dos médicos transcrevo abaixo mais uma passagem presente na página 50:
"Isso me mostra, de maneira dolorosamente clara, que nossa sociedade não está preparada e que os nossos médicos, como parte dessa sociedade miserável, e em busca ativa pela ignorância da realidade da própria morte, não estão preparados para conduzir o processo de morrer de seus pacientes, o fim natural da vida humana."
Por outro lado, o livro talvez tenha cumprido seu objetivo se foi escrito para leigos. Realmente o brasileiro evita tanto quanto pode falar sobre o morrer e muitas vezes confunde a ortotanásia (morte no momento correto) com a eutanásia (morte antecipada). Nesse ponto, talvez o livro seja adequado, mesmo que seja da minha opinião que quase o livro inteiro poderia ser resumido na ideia de que é difícil morrer bem se a pessoa não viveu bem.
A partir daí, o meio do livro é dedicado não muito ao morrer, mas ao citar como a pessoa deveria viver melhor para não ter arrependimentos na hora da morte. Trabalhar menos, amado mais, chorado mais, sair mais com os amigos, etc e eu poderia continuar aqui citando Epitáfio dos Titãs mas prefiro não me alongar. O carpe diem ainda fica claro nesta passagem (página 72): "Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim de semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido."
A autora também não consegue se despir de suas crenças mesmo no capítulo "A dimensão espiritual do sofrimento humano", apesar de pregar que esse deve ser o caminho diante da morte, deixando claro a influência da medicina e da religião oriental sobre a autora. O capítulo sobre o luto é curtíssimo e senti falta de mais relatos da experiência da autora com a morte.
Ao fim, o livro retoma a assertividade do seu início, muito tarde para se salvar aos meus olhos. É curioso ainda que a autora deixe escapar na reta final do livro que sai de casa muitas vezes antes das 6h da manhã e volte depois das 23h. No livro, ela não parece incomodada com isso, mas não deixa de ser irônico este comentário após tantas passagens criticando o excesso de trabalho.
Dessa forma, não recomendaria esse livro a qualquer pessoa que já tenha discutido sobre a morte ou parado para pensar sobre ela. Dificilmente lerá algo novo nessas páginas e encontrará muito pouco sobre cuidados paliativos. Válido talvez pelas grandes citações sobre a morte distribuídas pelo livro, das quais cito a seguir as minhas preferidas:
"Não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou"
- Gilberto Gil (página 59)
"Seja como espectadores, seja como protagonistas, a morte é um espaço onde as palavras não chegam."
- Rilke (página 63)
"Qual é a coisa mais assombrosa do mundo, Yudhisthira? E Yudhisthira respondeu, 'A coisa mais assombrosa do mundo é que ao redor de nós as pessoas podem estar morrendo e não percebemos que isso pode acontecer conosco'."
- Mahabharata (página 173)