Antônio Prado 29/08/2016
Clarice e nós mesmos
Muitas vezes, chegando ao trabalho, uma colega se virava para mim e dizia: "Vira a Clarice! Não quero que ela fique olhando pra mim!". As pessoas sabem que os olhos de Clarice são capazes de sempre ver "algo a mais", feiticeira que ela era, capaz de com um jogo de palavras capturar o mais íntimo de nós e dela mesma. Encontrar o íntimo de nós talvez fosse o principal, porém invisível, desejo de Clarice. Ou pelo menos encontrar o seu íntimo. Ler todos os contos de Clarice, de acordo com sua publicação cronológica, nos dá a oportunidade de participar com ela dessa busca pelo seu "eu": da jovem acanhada, viva, até a escritora consagrada e, já no declínio de sua saúde, até mesmo necessitada. Clarice se confessa a si mesma nos contos, que têm um timbre místico, religioso. De todos os contos, os que compõem "Laços de Família" e "A Legião Estrangeira" são os que representam melhor Clarice, no auge de sua criação e de sua busca. Porém, todos os outros contos, de todos os outros momentos de sua vida (até mesmo os de "A Via Crucis do Corpo", encomendados, pornográficos, etc.), são um registro da genialidade diria que "doméstica" de Clarice, porque no comum, no cotidiano, suas personagens se transformam e nos transformam. Pela leitura de Clarice, somos capazes de apreender o mundo com o que ele tem e o que ele é, o nosso lugar e o nosso próprio "ser" nele. Clarice é feiticeira, é mestra. É capaz de nos ensinar a também ver no dia a dia o nosso próprio lugar e o nosso "ser" no mundo. Sua vida e sua obra são um presente para o Brasil e para o mundo, e a coletânea de todos os seus contos, em especial, uma oportunidade de descobrir Clarice e nós mesmos. Clarice é hipnótica!