mpettrus 21/12/2022
A Pornografia da Tortura de Um Deficiente
?No início do romance de Hanya Yanagihara, ?Uma Vida Pequena?, quatro jovens, todos formados pela mesma prestigiada universidade da Nova Inglaterra, começaram a estabelecer suas próprias vidas adultas na cidade de Nova York. Eles são fortemente ligados uns aos outros: Willem Ragnarsson, o belo filho de um trabalhador do rancho de Wyoming, que trabalha como garçom, mas aspira ser ator; Malcolm Irvine, o descendente birracial de uma rica família do Upper East Side, que conseguiu uma posição de associado com um arquiteto europeu; Jean-Baptiste Marion, o JB, filho de imigrantes haitianos, que trabalha como recepcionista em uma revista de arte do centro da cidade, em cujas páginas espera, em breve, aparecer; e Jude St. Francis, um advogado e matemático, cuja proveniência e origens étnicas são amplamente desconhecidas, mesmo por seu trio de amigos.
? Jude, o protagonista do romance, a princípio, julguei que a história seria centrada no quarteto de amigos, mas no decorrer de 780 páginas, JB e Malcolm se tornam meros coadjuvantes de si mesmo e Willem é salvo entre um arco e outro bem delimitado, nos é revelado paulatinamente sua vida desvendando o seu passado chocantemente traumático no qual ele foi desfigurado por um psiquiatra sádico, e permeia sua existência fingindo buscar a redenção e só depois se mata por um derrame auto administrado - é muito triste.
E o que restou para mim, enquanto leitor foi um evangelho ferozmente tenso do sofrimento da protagonista. Fiquei com a impressão de que o grande objetivo da autora era chocar o leitor. Presa nessa cegueira, em minha opinião, ela acabou escrevendo um romance altamente previsível. E, uma vez que eu leitor descubro suas previsibilidades, a leitura se torna monótona e insípida.
O romance é vendido como um romance gay. Nada de negativo quanto a isso. Amo romances gays. Porém, deixe-me lhes dizer uma coisa: existem apenas dois homens gays reconhecíveis nesta história: JB, quase o estereótipo de uma rainha gay muito criativa e Caleb, um sádico violento e, possivelmente psicopata. Todas as outras ?possibilidades? são pedófilos (categoricamente não gays ? isso é uma doença, um mal, que não tem nada a ver com ser gay) ou tão irremediavelmente confusos e impotentes que você não consegue saber o que eles são.
A abordagem dos gays aqui é antediluviana não importa a superfície brilhante de suas vidas, estão fadados apenas a morrer de forma solitária e miserável. JB, a metáfora da rainha espirituosa, extravagante, instável e criativa é apenas um ponto da trama. Sua felicidade, dito, mas não mostrado, no final amargo não significa nada mais do que isso. Ele é um dispositivo para arrancar de você mais um arrependimento, mais uma tristeza. Você pode ter certeza de que ele também terá uma morte ignóbil logo após a última página deste romance. E você não ficará incomodado, ofendido ou excitado pelo sexo gay (ou realmente por qualquer sexo) aqui porque não há: é o sexo que não ousa dizer seu nome. Tudo isso porque a autora não sabe absolutamente nada sobre gays além dos estereótipos mais superficiais e não tem imaginação para se aventurar mais fundo.
Também discordo que este é um romance sobre amizade. A própria autora nos diz que a amizade nada mais é do que o gotejamento lento das misérias. Digo-lhes que é a própria autora quem nos fala na narrativa porque, para mim, sua presença foi o tempo todo sentida. Não há absolutamente nada aqui que não seja a presença da autora. É tudo sobre contar uma história e não mostrar a própria história.
Este livro não é sobre amigos, é sobre facilitadores. Todos os personagens principais estão lá especificamente para ajudar Jude, que é justamente o que o destrói. Se fossem seus amigos, nunca teriam deixado às coisas progredirem do jeito que aconteceram. Os personagens são desenhos animados. Eles não podem crescer. Eles não podem surpreender. Tudo o que eles podem fazer é seguir adiante com o enredo meticuloso. Eles não estão aqui para nenhum outro propósito. Eles não são realmente personagens, são apenas peças de engrenagens em uma máquina.
Outro ponto que me incomodou muito foi perceber de imediato a quão manipuladora é a autora com seu leitor levando-o até o enésimo grau de miséria e tristeza. É uma manipulação intencional de emoções para compor a história para provocar dor no leitor, para fazê-lo se sentir o mais terrível e triste homem da raça humana.
Tais maquinações deliberadas violam o pacto implícito entre leitores e autores: para o primeiro, manter a mente aberta e suspender a descrença na leitura do romance, e para o último escrever uma história tão verdadeira quanto possível, o que significa não tentar enganosamente manipular a opinião do leitor. Escrever a história com seus fatos fictícios de forma honesta, verídica, orgânica. Claro, o escritor pode influenciar com subtexto e humor, para tornar a leitura da história edificante, não que seja uma obrigatoriedade.
Hanya não tem uma narrativa ruim. Admito que gostei de como ela desenvolveu o protagonista no decorrer da narrativa, foi seu maior acerto. Mas estou falando em termos de estrutura narrativa, em termos técnicos de literatura. Ela emprega uma estratégia de enredo do qual eu gostava muito quando era adolescente, que era pensar em tantos destinos terríveis quanto pudesse e acumulá-los sobre a protagonista, um após o outro, até que a autora fica sem ideias, mata a protagonista e escreve cenas comoventes de seus amigos e parentes lamentando sua vida miserável e morte prematura. Atualmente, estou um leitor extremamente exigente.
Por fim, e não menos importante, é bom saber que Jude é inteiramente uma invenção da Yanagihara, não uma figura baseada em testemunhos de sobreviventes de estupro infantil, estudos de casos clínicos ou qualquer coisa empírica. Jude é um objeto irritante de atenção, mas resisti em culpar a vítima. Eu culpo o autor.
A protagonista é uma invenção da mente da autora totalmente formada, pronta, sem chances de revelar nuances e crescimentos pessoais. Fica claro para mim que ela criou essa personagem apenas para nos contar de um homem deficiente que não tem a menor chance de ser feliz. Dito isso, pareceu-me uma história pornográfica torturando um homem deficiente. Deixe-me lhes dizer mais sobre isso: eu, enquanto homem gay e pessoa com deficiência, não me sentir representado por essa personagem em nenhum momento durante a longa narrativa de 780 páginas. Mais uma vez, fica claro para mim que a autora não sabe nada sobre a vivência do homem gay e, sobretudo, a vivência de pessoas com deficiências.
Esse romance desenvolve uma trajetória descendente implacável. Poderia ter tido ainda mais impacto com menos animais selvagens rondando por menos páginas, mas me pareceu apenas um livro voyeurístico. Eu estava desejando que o protagonista se parecesse mais com aquela foto de Hujar na capa do livro, de um belo jovem no auge de um orgasmo. Neste ponto, me repreendi pelo meu prazer de um pouco de vida, mas há de se lembrar de que o bom gosto tem seu lugar e também seus limites. Gosto de escritores que estão dispostos a ultrapassar seus limites narrativos, mas desde que o façam bem feito nos levando ao lugar que na minha imaginação de leitor posso chamar de paraíso.