Sofia Dionísio 23/05/2024
Boas intenções, péssimos resultados
Parte minha não quer escrachar esse livrinho. Dá para notar as boas intenções. Eu até me identifiquei com uma coisa ou outra! Teve uma piadinha aqui e ali que me fez rir! Mas os problemas se somam e ofuscam as qualidades.
Por onde começar? Talvez pelo mais perdoável, que são os termos desatualizados. O livro é de 2015, e eu só fui começar a me informar sobre autismo depois de 2020, eu não sei quando cada termo foi atualizado, quando certas expressões caíram em desuso, quando certas formas de falar no assunto foram determinadas como inadequadas. Algumas eu sei que é bem recente, como a separação de autismo e asperger ter sido dissolvida, tem muita gente que tem diagnóstico de asperger até hoje mesmo sendo uma condição que "não existe mais", não é dum dia pro outro que some todo um diagnóstico. Algumas coisas eu já não tenho certeza, como "pessoa especial", usar "psicofobia" pra se referir a preconceito contra autistas (o certo seria capacitismo, nesse caso) e toda uma linguagem que trata "deficiência" como termo pejorativo e quer negar autismo como deficiência. Agora, tratar autismo como uma escala de "leve" a "grave", e representar isso com um bonequinho lendo "comportado" no "leve" , um rasgando o gibi sem querer no "meio" e um pulando em cima do gibi enquanto balança os braços no "grave" é capacitista até quando "leve" e "grave" eram termos mais aceitáveis dentro desse assunto. Também já ouvi falar que isso de associar autismo com azul caiu em desuso, mas é uma discussão que eu não sei absolutamente nada sobre, então me abstenho.
E então os mais graves. Nesse livrinho de tirinhas bobas super curto, ele consegue ser distintamente racista e misógino/machista (nesse caso fico na dúvida de qual termo usar). Personagens negros são desenhados com beiços protuberantes e rosados, de uma forma que beira uma caricatura racista. Sim , é cumum pessoas negras terem lábios maiores, e o tom do lábio é diferente do tom da pele, mas existem formas de se retratar essa característica que são mais ofensivas que outras, e a usada aqui está mais para ofensiva do que não. Sou uma pessoa branca, então não quero afirmar categoricamente se cruza ou não a linha do aceitável, mas foi o suficiente pra me deixar desconfortável, ainda mais levando em conta que nenhuma outra etinia é desenhada com beiço demarcado (com exceção de mulheres de batom). Na misoginia, é mais ambíguo. Mulheres são apenas objetos de desejo do protagonista ou A Mãe ou A Amiga da Mãe. A amiga que ele tem é um crush. Ele fica "apaixonadinho", e demonstra isso, por uma médica dele e uma professora que solicita uma palestra dele para os alunos dela. É bem abstraído de situações reais, e sim, o personagem é autista e muitas o humor vezes é sobre como ele age de maneira inapropriada, isso tem que ser levado em consideração, mas ainda acho errado um livro que se propõe tanto a ser material de conscientização querer colocar "constranger e assediar mulheres independente de estar em contexto profissional ou não" como um traço autista.
Por fim, o mais subjetivo, mas também talvez o mais grave num nível de crítica literária: o traço dos desenhos é feio e o humor é ruim. Pouca coisa é engraçada. O protagonista, que é o autor, é arrogante o tempo todo sobre como ele sabe desenhar, como o desenho é uma habilidade forte dele, enquanto o quadrinho tem péssimos desenhos, tanto nos designs quanto nas execuções. É ruim criticar a esse ponto, mas honestidade acho que fica abaixo da qualidade mínima de um desenho "profissional". O humor é tosco. O autor-protagonista é muito arrogante, e muita tirinha se vale dele se achar melhor que os outros. Como eu disse no começo, teve, sim, piadas que eu achei engraçadas e situações que eu, como autista, me identifiquei, mas estas foram minoria.
No fim, é um material que falha em tudo que era importante ele não falhar, que ainda tem boas intenções que fazem doer de criticar, mas não ao ponto de redimir as falhas.