Luis 27/02/2017
O Canto da Sapoti
Seguindo a sua trajetória de biógrafo comprometido em resgatar a chamada época de ouro da MPB, época em que esse termo de fato ainda nem existia, Rodrigo Faour nos lega o seu até aqui mais ambicioso trabalho, “Angela Maria- A Eterna Cantora do Brasil” (Record,2015), praticamente um tratado de pouco mais de 800 páginas, que revela uma pesquisa obsessivamente detalhista sobre a artista, um verdadeiro mito entre as interpretes nacionais, basta dizer que ela começou a carreira sob forte influência de Dalva de Oliveira (a quem imitava e com a qual estabeleceria uma mal disfarçada rivalidade) e, anos mais tarde, serviria de inspiração à jovem Elis Regina, apontada por muitos, como a maior cantora da história do Brasil.
Sem demérito, apenas como constatação, é preciso que se diga que Rodrigo, em termos de texto, não está no mesmo nível da santíssima trindade dos biógrafos brasileiros, Ruy Castro, Fernando Morais e Lira Neto. Aqui e ali, sentimos falta da bossa que permeia os escritos dos três citados e que, por si só, é uma atração à parte de tudo que publicam, independente da história a ser contada. Mas isso não faz de “Angela Maria” uma biografia menor, sendo nítido o ponto forte do autor, já revelados em obras anteriores, notadamente no livro sobre Cauby Peixoto, em fazer levantamentos exaustivos que revelam quase tudo sobre o personagem. Nesse ponto, o volume é impecável.
Traçando uma trilha linear, a história nos é contada desde o nascimento de Abelim, nome verdadeiro da cantora, em uma família pobre do interior do Rio de Janeiro, em 1929. Mesmo filha de protestantes, ela desde cedo se encantou pelos artistas populares que ouvia no rádio, e em especial, pela estrela então em voga, Dalva de Oliveira. Logo em seguida, graças às muitas cantorias que não tinham hora nem lugar, começou a se destacar pela sua voz, o que, não raro lhe causaria problemas inusitados, como por exemplo, ser demitida em função de distrair os colegas.
Após muitos conselhos e se opondo à opinião dos pais, Abelim resolve vir tentar a carreira no Rio, onde começa se apresentando nos indefectíveis programas de calouros da época, como o de Ary Barroso, na Rádio Tupi, e Renato Murce, Papel Carbono, na Nacional, onde iniciantes imitavam os grandes nomes da então, onde Abelim atacou de Dalva de Oliveira. Embora tenha obtido sucesso em praticamente todos eles, a artista, já agora rebatizada como Angela Maria, foi orientada por Murce a buscar o caminho da profissionalização através do trabalho em cabarés, boates e, principalmente nos Dancings. Esses últimos, estabelecimentos clássicos dos anos 40 e 50, eram lugares onde os cavalheiros “alugavam” damas para dançar, marcando o número de danças por meio de picotes em um cartão. Animados por orquestras que tocavam de tudo com vários crooners à frente, os dancings foram o berço artístico de diversos nomes que fariam história no rádio e no disco, como Elizeth Cardoso (que além de crooner, batalhou muito também como bailarina), Jamelão e Roberto Luna.
Contratada pelo Dancing Avenida, o mais famoso deles, no final de 1950, Angela agradou de cara e rapidamente conseguiu um bom grupo de admiradores que presenciaram o nascimento da estrela e alguns episódios históricos, como o dia em que cantou com Francisco Alves, pois o cantor foi até o Avenida divulgar o seu disco para o carnaval de 51 e se encantou por sua voz.
Como vaticinara Murce, os Dancings eram realmente os lugares ideais para se iniciar uma carreira, pois eram bastante frequentados por gente da indústria fonográfica e das rádios. Não demorou muito, Angela chamou a atenção de Erasmo Silva, parceiro de Wilson Batista (que ganhou também recentemente excelente biografia, “O Samba foi sua glória, de Rodrigo Alzuguir) e que levou Jaime Moreira Filho, da Rádio Mayrink Veiga e Vitorio Lattari, da RCA, para conhecê-la. Em pouco tempo, ambos a contrataram.
Iniciou-se a partir daí uma carreira meteórica que sobreviveria a décadas e estilos. Dos fulgurantes anos 50, quando principalmente a partir de 54 reinaria quase absoluta (foi eleita Rainha do Rádio nesse ano, tendo pouco antes ganho o apelido de Sapoti de ninguém menos que Getúlio Vargas), passando pelo pioneirismo na televisão, onde além de se apresentar nos principais programas também teve atrações próprias, a sobrevivência nos anos 60 mesmo em meio ao tiroteio do iê iê iê, o qual tentou tristemente aderir com o infeliz disco “Angela em Tempo Jovem” (1969), a afirmação de sua popularidade na década seguinte, ressaltando o seu gosto pelo repertório romântico popular até finalmente, tal como seu amigo e parceiro Cauby, virar cult sendo reverenciada por gerações de artistas. Quase um roteiro hollywoodiano.
Embora seja um livro de “fâ”, Faour não se restringe a dar loas à longa carreira da Sapoti, muito pelo contrário, ele contextualiza e avalia com neutralidade delicadas questões como por exemplo a fragilidade de boa parte do repertório da cantora, originando discos sofríveis, como os da segunda metade dos anos 60, ou ainda, as muitas dificuldades enfrentadas na vida pessoal, sobretudo em relação aos seus primeiros e fracassados casamentos.
Talvez por dispor de farto material de pesquisa, a maioria coletado junto aos inúmeros fãs de Angela, a quem o autor dedica belas linhas de agradecimento, Rodrigo abusa um pouco do recurso das citações, em boa parte na integra, de diversos artigos, críticas e entrevistas sobre e com a cantora ao longo de mais de 60 anos, o que em alguns momentos cansa o leitor e explica boa parte do gigantismo da edição.
Por outro lado, muitas vezes acerta ao resgatar o ambiente musical dos anos 50, o apogeu de Angela, através de digressões importantes, como o depoimento de Cesare Benvenuti (página 553), produtor da Copacabana, sobre o esquema de divulgação da gravadora na época, uma verdadeira aula que nos deixa cada vez mais ansiosos sobre uma obra que finalmente disseque a história da indústria fonográfica no Brasil. Espero que alguém esteja pensando nisso.
Voltando à Angela, embora careça de ajustes, sobretudo por sua amplitude, o livro de Rodrigo Faour é contribuição fundamental para se conhecer um pouco mais da cultura de massa no Brasil do século XX, sonorizada por vozes do quilate de Franciscos, Orlandos, Dalvas, Emilinhas, Marlenes e Sapotis.