Ladyce 26/02/2017
Meu grupo de leitura se dividiu a favor e contra o livro A resistência, de Julián Fuks. Somos vinte. Foi meio a meio. Para minha surpresa estou do lado dos que gostaram. Surpresa porque eu e o Prêmio Jabuti temos tido através dos anos visões opostas de valor. Minha discordância tem sido sistemática. Em geral, prefiro os segundo e terceiro colocados ou nenhum deles. Portanto, já começo a ver Julián Fuks como exceção. Ou será que meus parâmetros estão mudando? Fica a dúvida. Qualquer que seja a resposta, o fato persiste, li o livro, fui até o fim (acreditem-me não tenho pena de deixar livros de lado, se não gosto), e ao final gostei da experiência.
O que me pegou nessa pequena obra, foi o tom. Bom narrador, Julián Fuks navega com destreza do início ao fim, através das inúmeras reflexões do personagem principal. Tom e voz narrativa são valores difíceis de quantificar, mas, para mim, são a porta de entrada para leitura. Além disso, A resistência combina o gênero da memória com reflexão, combinação que ao longo dos anos tem-se tornado um dos meios narrativos que mais me satisfazem.
A história trata de uma obsessão: o narrador, Sebastián, quer entender o que levou o irmão mais velho a se afastar emocionalmente do resto da família na época em que se tornava um jovem rapaz. O narrador é um de três filhos de um casal de imigrantes argentinos que se estabeleceu em São Paulo. O filho mais velho foi adotado, ilicitamente, ainda na Argentina, no período em que o casal se esforçava, sem sucesso, para ter filhos. Adotaram afinal um menino, na mesma época de instabilidade política no país que eventualmente os levaria a imigrar para o Brasil.
Acredito que no afã do marketing, na vontade de seduzir o leitor com um assunto politizado, de vanguarda, tomou-se a infeliz decisão de enfatizar passagens da política argentina, como se fossem centrais à trama. Ainda que a palavra 'resistência' tenha tido um cunho político, principalmente durante governos ditatoriais, aqui a política não passa de evento circunstancial, cortina de fumo, distração ilusória que encobre a verdadeira trama, explicitamente colocada no primeiro parágrafo do livro. “...Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso dizer cicatriz.” Aí está toda linha dramática do texto. Quanto mais Sebastián pretende não aludir à adoção do irmão, mais ele é incapaz de esquecê-la; mais ele resiste. Como não pode se referir a ela, mesmo que essa adoção, seja conhecida por todos os familiares, inclusive o adotado, ela se torna o elefante branco familiar, invisível e não reconhecido problema, estatelado no dia a dia da família, imóvel e ocupando um grande espaço, aquilo que todos resistem a admitir.
A procura pela memória, pelo fatos, ações, circunstâncias do passado que justificariam o comportamento do irmão mais velho, fazem com que o narrador desenvolva uma linha narrativa primorosa, revendo mais de uma vez, por diferente ângulo não só os eventos do passado como suas próprias reações, questionando-se sempre. Evoca e medita sobre o passado em comum com Sebastián e com a família e explora as possibilidades daquilo que lhe é desconhecido. Esmiúça tudo, sem resultado plausível. A resolução vem do próprio irmão adotado, numa catártica explosão, muito bem desenvolvida. Este é um belo livro. Meditativo. Reflexivo. Um livro que extrapola a história contada. Recomendo.