carlosmanoelt 14/05/2024
?Uma fuga em alguma medida.?
?Isto é história e, no entanto, quase tudo o que tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras. Não se trata aqui de uma preocupação abstrata, embora de abstrações eu tanto me valha: procurei meu irmão no pouco que escrevi até o momento e não o encontrei em parte alguma.?
Em ?A Resistência?, o escritor Julián Fuks destrincha o significado da palavra que dá título ao livro a partir das memórias afetivas de um narrador que se vê dividido entre a necessidade de contar uma história e a dificuldade de recompor fatos inalcançáveis, seja pela distância do tempo, seja pela grandeza do trauma. A ficção consiste muito mais no arranjo da linguagem a fim de dar uma forma estética que possa entrar em comunicação com o leitor do que, propriamente, como fantasia, imaginação ou fabulação. Fuks observa que, mesmo diante da materialidade que evoca o passado, como a casa onde algo aconteceu, o local da catástrofe, não é possível ter acesso à verdade: ?Por isso, o tipo de literatura ou autoficção que mais me interessa hoje é a que desconfia de si mesma e desconfia da própria capacidade de reconstruir o passado.?
Filho de militantes de esquerda que buscam exílio no Brasil nos anos sangrentos da ditadura argentina, o narrador, Sebastián, começa seu relato apresentando o irmão mais velho e revelando que ele foi adotado. O tempo presente e as recordações se alternam e revelam uma família marcada pela luta e pelo silêncio ? ambos impostos tanto pela ditadura quanto pela culpa. A relação conflituosa com o irmão é o gatilho para a empreitada literária do narrador, que busca nas palavras o refúgio que não encontra em casa. As lembranças imprecisas sobre o nascimento da criança e os caminhos que a levaram ao lar adotivo trazem à tona uma inquietação que faz o pessoal transcender para a política.
A sutileza na descrição das memórias e dos problemas familiares não impede que as truculências da ditadura argentina tenham espaço no romance. A orfandade proporcionada por um Estado aniquilador de pais e de cidadãos, a imposição do silêncio e a violência do exílio ganham contornos impactantes no texto de Fuks. A linguagem é sóbria, mas não é pobre, pelo contrário. Em cada frase, nota-se a escolha calculada do vocabulário. Assim como o substantivo do título, ?resistência?, alcança uma escala inimaginável de significados, outras palavras, como exílio, adoção, silêncio, proliferam no texto e, a cada ocorrência, descortinam novas percepções.
Outro ponto de destaque do romance é a maneira franca com que a falibilidade da memória é encarada. Em diversos momentos, o narrador se corrige, declara sua incerteza sobre as recordações e abre as portas para ficção. A resistência está em toda parte: na militância dos pais na Argentina dos anos 70, na luta solitária do irmão para se sentir parte de um lar e na dificuldade do narrador para concretizar em palavras a efemeridade da própria memória. A resistência está em um relato que é tão íntimo, quanto público.