Howie 21/05/2024
Caduquei
Justamente pois “uma história triste é sempre bonita quando acontece com outra pessoa” que fiquei tão fascinado com Madame Xanadu após a leitura.
O primeiro diferencial dessa obra é estabelecido em seu próprio plano de fundo: a linearidade dos acontecimentos que, na verdade, não são nada lineares. Como dito em seu princípio, o livro começa no fim — não para fabricar um mistério, mas porque só podemos contemplar essa história por conta de seu ápice; uma vez que isso fica claro, tudo se torna mais avassalador. E eu não digo isso de forma conotativa, não: Aureliano conseguiu formar um verdadeiro e perfeito ciclo. Tomando para mim as análises de um colega, Madame Xanadu é um belo exemplar de um Ouroboros — figura mitológica que, em resumo, é uma serpente que está continuamente abocanhando sua própria cauda e, assim, representa a evolução de si e o eterno retorno. Ambas estas perspectivas são aplicáveis à nossa protagonista que, ao mesmo tempo que a interpreto como uma personagem estática, meramente um recorte de determinado tempo e não passível de movimento, também a vejo como o objeto de impulso para que essa evolução, de fato acontecesse. Temo minhas palavras soarem confusas, mas pensemos que Madame Xanadu (a figura) é um ser à parte de todos os acontecimentos dados no passado da história e, no entanto, é/foi essencial para que houvesse um futuro, mesmo esta não podendo fazer parte dele. Entendem? Ela não está em lugar nenhum sem ser o presente. A drag queen torna-se um ‘eterno retorno’ na medida em que foi porta de entrada para a resolução do conflito central da narrativa e, simplesmente, peça de um retorno muito importante.
Mantendo-me na dissertação das reviravoltas da obra, eu comecei a ler sem saber sinopse ou qualquer outra vírgula que seja a respeito de Madame Xanadu e este é, podem crer, o melhor jeito de o experienciar. Tudo foi confuso à princípio, não vou mentir, mas, na medida em que as partes se esclarecem e o quebra-cabeça forma uma imagem compreensível, vale a pena. Cada revelação é uma bomba que vai deixar o leitor ainda mais intrigado pelo que o enredo entregará. Até a última linha é uma revelação, que engendra o mesmo Ouroboros anteriormente tratado.
A constituição dos textos de Aureliano é, em poucas palavras sensível e alcança o âmago. Eu não diria que é um livro de fácil conexão, principalmente pela complexidade dos assuntos tratados, mas os ditos de Paulo Ratz (um booktuber 🫢) sobre a necessidade que sentimos em nos conectar me convenceram de que, na realidade, isso é dispensável. Não se conectar com outrem (fictício ou não) não torna tal um sujeito de menor importância, tampouco suas vivências. Retomando a pauta principal, os escritos que acompanhamos são riquíssimos de detalhes — não denotativos, mas figurativos no ponto certo para que possamos compreender e contemplar inteiramente a raiva, a alegria, a saudade, ou a dor. E dói, Madame Xanadu é um livro que vai te atingir, você gostando ou não dele em seu fim; é que “parece que somos feitos de dor, né?”. Infelizmente não sei ao certo referir onde que ouvi isso, entretanto parafraseio que a composição dos personagens é um legítimo estudo de diversas visões, diversas individualidades, lidando com a dor. Por isso reforço que, independentemente de quantas páginas foram cedidas para cada uma das pessoas constituintes do livro, todas estão em processo de cura de diversas dores que doem já há muito tempo.
Outros aspectos presentes neste romance, também, são o lirismo e o humor. Tenho para mim que comentar acerca de seu lirismo é de relevância justamente porque costuma ser um grande divisor de águas dentre a comunidade leitora: uns amam (incluo-me nessa), outros odeiam. Madame Xanadu ama e seu autor faz questão de rechear a narrativa com essa característica — ao meu ver, é o que dá o molho, viu? Escancara a melancolia e torna os escritos tão subjetivos quanto os próprios personagens; em especial, nossa dama, claro. Pois Madame Xanadu é um fragmento e não pode ser interpretada em seco. Quanto ao humor do enredo, Aureliano soube medi-lo com perspicácia: uma história tão pesada quanto esta necessita de um pingo de humor cá e acolá, não apenas para aliviar para o leitor, mas para tornar os personagens em si mais humanos. Pessoas são assim mesmo, “meio confusas, meio tristes, meio boas, meios tronchas, meio etéreas”.
O desenvolvimento dos personagens trata-se disso mesmo, do que acabei de citar no parágrafo anterior. Vi uma (1) crítica online apontando Madame Xanadu como tendo uma precária elaboração de sua gente e, com todo respeito às demais opiniões presentes nesse vasto mundo, entretanto creio ser uma nota repleta de ignorância. O livro em questão, de fato, não tem páginas o suficiente para que todos os seus personagens tenham seus passados, presentes e futuros traçados com precisão, mas sabemos de cada um o suficiente para compreendermos como estes impactam na vida de quem efetivamente seguimos: Madame. Ao desfecho, é nítido que esta é uma figura fenomenal (em seu sentido mais puro, de ser *rara*), portanto, sequer seria plausível estabelecer uma relação grandiosa com os demais personagens. Sendo honesto, eu falo muito da nossa dama aqui, todavia, não querendo entregar spoilers, a drag queen é apenas uma mera ‘superfície’ — se é que posso chamar uma personagem tão enigmática de tal maneira.
Emprestando de novo as observações daquele meu colega (um querido ele), além de ser Ouroboros, Xanadu também é Janus — divindade que, em síntese, encara o passado e o futuro ao mesmo tempo. Essa deve ser a mais emblemática face de nossa amada protagonista, a iniciar pela capa antiga do livro, a qual é literalmente aquela representada duplamente, com cada uma de suas figuras encarando um lado diferente — bem como Janus. O deus, sobretudo, representa a mudança e, em seus tempos de reinado na Itália, trouxe riqueza e prosperidade; tamanhos fatos objetivam as intenções do autor (não que haja uma certeza sobre isso, são apenas especulações), porque foi literalmente esse o conjunto de ações que Madame Xanadu causou em seus arredores. Mas algo que é precisamente canônico é o uso de cartas de Tarot como guias da narrativa — não apenas nas ilustrações, mas em detalhes dos textos sozinhos —, que giram em torno da configuração e personificação de Madame e revelam-se elemento modelado com primazia. Eu, particularmente, amo "easter-eggs" no meio de qualquer enredo, então notar isso torna as coisas mais interessantes, não é mesmo? Não somente de cultura pop entende essa arte, mas da cultura como um todo.
Ainda articulando no que se refere à cultura, outro lado que fomentou a minha admiração por Madame Xanadu foi sua ambientação. A obra passa-se em Natal, no Rio Grande do Norte — algo que já é singular visto que vemos poucas histórias sucedidas por essas bandas. E é ótimo ver tamanha representatividade pois, além de tudo, somos inseridos naquele local incrivelmente bem; eu genuinamente me senti cativada a viajar para lá e explorar a cidade. Talvez para alguns o lugar soe insignificante, porém Aureliano mesmo comenta, nos agradecimentos do livro, sobre as diferenças de sua própria narração de Natal nesta edição e na primeira — discute que, anteriormente, “desmerecia” sua terra nas palavras que escrevia e, na nova publicação, conseguiu remontar a impressão da região de forma muito mais “estimada”. Não posso dizer que a maneira na qual contempla Natal é coesa já que nunca estive lá, mas definitivamente me remeteu a um bom e flexível recinto — ele pode ser lar de alegrias e desgraças, mas é, particularmente, um recinto que permite aos nossos personagens a melancolia correta para a ponderação desejada.
Minha única crítica ao livro (que não é bem uma crítica) é a inserção de Jeferson. Ele, o qual não comentarei muito para não dar spoilers, esteve na obra durante todo o seu percurso, com certeza, todavia não o senti presente ou desenvolvido o suficiente para que eu me importasse com ele. Eu me importei com Madame Xanadu, eu assisti à Madame Xanadu, eu assimilei Madame Xanadu, não Jeferson. E, dessa forma, eu sentirei saudade dela também, não dele. Só penso que, ao fim, eu gostaria de ter aprendido melhor suas razões e os seus sentimentos.