Nury 17/12/2012
"Sagarana" é um verdadeiro divisor de águas no âmbito da literatura lusófona, pois marca o início da profunda transformação verbal realizada na língua portuguesa pelo autor; Guimarães Rosa foi, além de escritor, notório poliglota ("Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do checo, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras."), homem inteligentíssimo, diplomata, médico. Acima de tudo, porém, foi um profundo amante da palavra, e essa paixão pelas letras é claramente a característica mais latente de sua literatura.
Confesso que, embora este não tenha sido meu pórtico à obra de Guimarães Rosa (meu primeiro contato com ela foi o excelente volume de contos "Primeiras Estórias"), o livro foi, de início, uma leitura um tanto quanto trabalhosa devido à escrita ímpar e inimitável do autor. No decorrer das páginas fui acostumando-me (ou melhor, reacostumando-me, dado que o mesmo embargo inicial marcou minha leitura de "Primeiras Estórias") à prosa roseana.
No entanto, acredito que a singularidade linguística de Guimarães Rosa não seja novidade para ninguém, portanto, falemos um pouco das estórias. Os contos que compõem "Sagarana" são todos ambientados no sertão mineiro e povoados pela sorte de gente que lá reside - consequentemente, o diálogo é permeado por regionalismos, nomes de fauna e flora e um português marcadamente coloquial. Os personagens apresentam os traços físicos típicos da região. Os enredos lidam com o cotidiano do sertanejo (entretanto, dois deles merecem destaque por apresentá-lo da perspectiva de animais: "O burrinho pedrês" e "Conversa de bois").
Todavia, (e é nisto que, na humilde opinião deste leitor, reside a força da literatura roseana) percebe-se que, destituídas de maior especificidade, as tramas possuem uma certa universalidade: são casos que podem se passar tanto no sertão mineiro quanto na Europa medieval ("O sertão é o mundo."). Guimarães Rosa, ao mesmo tempo em que retrata com fidelidade seu berço, tece contos cativantes e atemporais, e, mais importantemente, ao fazê-lo, alcança o que é para mim o objetivo de todo escritor: capturar a essência da alma humana em palavras. Leitura obrigatória para a vida.