Sthéfane 16/05/2024
Rapunzel colombiana, Rapunzel iorubá
?A lápide saltou em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou para fora da cripta. O mestre-de-obras retirá-la inteira, com a ajuda de seus operários, e quanto mais a puxavam, mais comprida e abundante parecia, até que saíram os últimos fios, ainda presos a um crânio de menina. No nicho ficaram apenas uns ossinhos miúdos e dispersos, e na pedra carcomida pelo salitre só se lia um nome, sem sobrenomes. Sierva María de Todos los Ángeles. Estendida no chão, a cabeleira esplêndida media vinte e dois metros e onze centímetros.?
Li esse livro em uma época em que a inteligência artificial estava começando a crescer: designs, trabalhos acadêmicos e livros idealizados por máquinas estavam ganhando cada vez mais espaço. Lembro-me bem de ver a vida sair dos olhos da minha irmã ao pensar que a criatividade humana seria logo substituída por algoritmos. Ela, como uma boa literata, desolou-se pensando o que virá a se tornar a literatura...
Nessa época fiquei assustada, bom, algumas IAs já estavam ganhando notoriedade pelas histórias criadas até que, chegou às minhas mãos este livro. E é por isso que para iniciar essa resenha escolhi, não uma frase do livro, mas um episódio que o escritor relata antes do romance, que aconteceu com ele e que foi a força motriz, o lume para a criação da história
Bom, eu não coloco muito da história dos livros aqui pois o próprio Skoob já se encarrega de tal função, mas, para que vocês entendam meu ponto, preciso fugir um pouco da minha própria regra. Gabriel Garcia Marquez, carinhosamente alcunhado de Gabbo, antes fora jornalista e, em uma de suas aventuras, foi visitar um antigo convento com criptas funerárias de muitas décadas atrás. Sem detalhar aqui o motivo pelo qual eles estavam a abrir as criptas, acabaram por exumar o local de descanso eterno de uma jovem, naquela época já esqueleto, que possuía um cabelo com mais de 20 metros de comprimento. Tendo em vista que o cabelo para de crescer ao morrermos, Gabbo logo concluiu que ela cultivara essa cabeleira em vida. Na mesma hora, recordou-se de uma história contada por sua avó e uniu ambos os acontecimentos para nos dar o prazer de lermos ?Do Amor e Outros Demônios?.
Onde quero chegar? Após esse livro, pensei com meus botões que uma IA não seria capaz de pegar essas informações e criar algo assim. O universo criado por Gabbo só pode nascer da boa e velha mente humana. Não que ele seja uma pessoa qualquer, claro, mas o ponto é que nada pode suprir ou substituir a capacidade do homem (e da mulher) de criar histórias e de contá-las.
Esse livro trata de religião, preconceito, língua e crença africana, raiva e claro, trata Do Amor. Um Amor que brota como consequência do conhecimento, e do ódio que nasce pela falta deste. A narrativa passa por exorcismos católicos e canções em língua iorubá, doenças físicas e doenças mentais, acolhimento e abandono, ao passo que gira em torno de uma menina de 12 anos totalmente incompreendida, salvo àqueles que os acolheram que são tão marginalizados quanto ela no decorrer da obra.
É um misto de religiosidade cristã e crenças africanas, mistérios, paixões, desejos, girando em torno do sentimento que nos atormenta desde sempre: o Amor.
Com certeza recomendo esse livro, pois quando temos histórias brilhantes como essas, devemos compartilhá-las, ou seria muito egoísmo de nossa parte.
?-Nossa guerra não é contra ela, mas contra os demônios que a habitem.?