Margarido 30/05/2012
Obra seminal
OBRA SEMINAL
O livro Breve História do Mito de Karen Armstrong (Companhia das Letras) reúne os qualificativos para qualificá-lo como obra de referência com uma particularidade: esgota o assunto de forma resumida. É a essência do que há de mais atual sobre o tema, articulando vários ramos do saber: arqueologia, história, antropologia, filosofia, teologia, religião e mitologia. E o resultado final é uma profunda reflexão sobre os impasses de nossa civilização planetária atual. É a leitura que nos permite adequar nossa visão sobre o mundo em que vivemos para trás, no presente e para o futuro. Coloca-nos numa encruzilhada do tempo-espaço. E fala-nos daquilo que é essencial para nós mesmos e para a humanidade à qual pertencemos. Faz-nos pertencer à humanidade não apenas em si mesma, mas à humanidade cósmica da qual a humanidade em si mesma não está desvinculada.
Karen Armstrong tem o poder da síntese sem deixar de ser profunda em suas colocações. Nada é desnecessário em seu texto. Todas suas colocações imbricam-se, conduzindo-nos de um ramo do saber ao outro na passagem de um parágrafo ao outro numa viagem que nos envolve como co-partícipes. Não há como nos desvencilharmos da narrativa vertiginosa que nos conduz ao cerne do problema enfocado.
A autora acompanha os mitos mais significativos para a humanidade desde o paleolítico até os dias atuais, pois, nas suas palavras, nunca “existiu uma versão única e ortodoxa de um mito. À medida que as circunstâncias mudam, precisamos contar a história de modo diferente, para expor sua verdade intemporal” . Dá-nos uma definição inicial do mito dizendo ser “um equívoco considerar o mito um modo inferior do pensamento, que pode ser deixado de lado quando as pessoas atingem a idade da razão. A mitologia não é uma tentativa inicial de fazer história e não alega que seus relatos sejam fatos objetivos. Como um romance, uma ópera ou um balé, o mito é fictício; um jogo que transfigura nosso mundo fragmentado e trágico e nos ajuda a vislumbrar novas possibilidades ao perguntar ‘e se?’ – uma questão que também provocou algumas das descobertas mais importantes na filosofia, na ciência e na tecnologia” .
Ficamos sabendo das diferenças dos mitos nas sociedades históricas e das sociedades não históricas. Consideram-se sociedades históricas aquelas que surgiram concomitantemente à existência da escrita, basicamente se referindo às tradições judaica, cristão e muçulmana. O restante da humanidade (e não é pouco e muito menos insignificativo) são consideradas sociedades não históricas, pois não dependem da tradição escrita em seus esforços civilizatórios. A linearidade, a seqüência casual no espaço e no tempo são próprios das chamadas sociedades históricas. Nas não históricas essas características não são significativas e nestes o mito adquire outras características. A evolução do mito dá-se a partir do paleolítico, diferenciando-se nas sociedades históricas e não históricas.
A reflexão de Karen Armstrong, acompanhando os diferentes mitos que surgem na humanidade, sempre colados aos grandes períodos como o paleolítico, onde os homens eram essencialmente caçadores, o neolítico onde passam a ser agricultores e, posteriormente, com o surgimento das cidades (a partir de 40000 a. C.), ancora na grande transformação ocidental ocorrida a partir do ano de 1500. Nossos dias atuais, marcados pela predominância do logos (razão), nega o mito – dizendo o mito tratar de uma concepção falsa da realidade. Trata-se de um modo equivocado de pensar – e isso Karen Armstrong demonstra com maestria. A ausência do mito está intimamente relacionado com o mal estar na civilização que caracteriza o homem atual. Nas palavras da Autora:
“Precisamos de mitos que nos ajudem a nos identificar com nossos semelhantes, e não apenas com quem pertence a nossa tribo étnica, nacional ou ideológica. Precisamos de mitos que nos ajudem a valorizar a importância da compaixão, que nem sempre é considerada suficientemente produtiva ou eficiente em nosso mundo racional pragmático. Precisamos de mitos que nos ajudem a desenvolver uma atitude espiritual, para enxergar adiante de nossas necessidades imediatas, e nos permitam absorver um valor transcendente que desafia nosso egoísmo solipsista. Precisamos de mitos que nos auxiliem a novamente venerar a terra como um lugar sagrado, em ver de utilizá-la apenas como ‘recurso’. Isso é crucial, pois não podemos salvar nosso planeta a não ser que ocorra uma revolução espiritual capaz de equiparar ao nosso gênio tecnológico.’ “
Eis um livro seminal. Claro. Objetivo em suas formulações. Breve em suas colocações. Incisivo em suas conclusões. Uma ferramenta para nosso sentir e atuar no mundo. Enfim: mais uma leitura obrigatória da preciosa pensadora Karen Armstrong.