Rolando.S.Medeiros 10/03/2022
A Cor da Magia — Worbuilding intrigante, discussão acerca de Crença vs Adoração, e sátira de diversos tropos da Fantasia e da Vida Real.
Os primeiros dois livros da série Discworld, ambos romances do Rincewind (A Cor da Magia e A Luz Fantástica) são um pouco ame ou odeie; pelas palavras do próprio autor: "Como esta é uma reimpressão por demanda popular – caramba – do primeiro livro de uma série que, eventualmente, passará dos dez livros, há uma boa chance de você já saber pelo menos o panorama geral da série, que é mais do que eu sabia quando escrevi"
Mas, mesmo com todos problemas e qualidades - que discorrerei sobre brevemente - o Rincewind se destaca como um puta personagem. Não por força ou inteligência, como geralmente se espera de um personagem principal, ele é um protagonista de fantasia não-tradicional, fujão, cínico, mago fracassado. É um dos poucos heróis relatáveis. Ele vive um mundo totalmente sem sentido, e não quer nada mais do que uma vida simples e comum, onde realize seus sonhos humildes de trabalhador,; só que em vez disso, é jogado no caos e na loucura total, com seu senso de autopreservação extremamente aguçado e um senso de humor irônico que é o tempero adicional
Sobre o humor, como ele é muito pessoal e subjetivo, vou tentar levar essa análise para um outro lado. Por exemplo, eu sou um dos que não consegue ver o mesmo humor hilariante e ''gargalheante'' que outras pessoas veem em A Cor da Magia. Também não estou dizendo que não há nada engraçado, pelo contrário, o livro de fato gera muitos sorrisos, mas são nas partes onde Pratchett deixa a sua imaginação correr livre, abarca o nonsense, o imaginativo e o onírico, em seus conceitos e ideias, que o livro brilha — e é um ponto mais concreto a se abordar em uma rápida resenha.
"As plantas do Discworld, embora incluíssem as ca-tegorias em geral chamadas de anuais, semeadas para nascer no mesmo ano, bienais, semeadas para crescer no ano seguinte, eperenes, semeadas para nascer sabe-se lá quando, também abrangiam algumas raras reanuais, que, por causa de um incomum desvio quadridimensional em seus genes, podiam ser plantadas no ano corrente para dar no ano passado. A noz vul era excepcional nesse sentido, porque chegava a florescer até oito anos antes de ser plantada. Seu vinho tinha fama de dar a certas pessoas uma visão do futuro — que, do ponto de vista da noz, era o passado. Estranho, mas verdadeiro."
Essa quote representa muito bem as tais ideias e conceitos que me carregaram através do livro. Nossa impressão inicial já é inundada pela nonsense quando logo nas primeiras páginas somos apresentados ao ''planeta'' central do romance: que tem formato de disco e não de esfera, e, além disso, é sustentado por quatro elefantes de proporções continentais (Berilia, Tubul, Grande T’Phon e Jerakeen), que por sua vez, estão sob o casco de uma tartaruga gigante estelar (a Grande A’Tuin) que vaga/nada através do espaço.
''O motivo exato do que foi dito acima ser dessa forma não está claro, mas explica um pouco por quê, no Discworld, os Deuses são mais criticados do que venerados.''
Outro ponto, é a ideia que o Pratchett tem dos deuses, que mais tarde seria (emprestada? surrupiada? concedida?) á seu amigo Neil Gaiman em American Gods.
Um deus no Discworld precisa de crentes para ser forte, e a maioria das pessoas acredita em sorte, boa ou má. (Mesmo no nosso mundo desejamos boa sorte às pessoas - também dizemos: "Foi apenas azar." defensivamente quando pisamos acidentalmente na merda, ou qualquer outra coisa. Algumas pessoas usam a palavra várias vezes ao dia.)
A Senhora (Destino) tem muitos crentes, mas ninguém a adora, ela não quer ou gosta de adoração. Curiosamente, a adoração pode realmente ser ruim para a saúde de um deus do Discworld.
Por exemplo, o adorador constrói catedrais, mosteiros, etc. Depois começam a fazer regras; eles interpretam o deus e dizem à congregações o que eles gostariam que o deus dissesse, atribuem seus próprios gostos e superstições ao deus - e, no Discworld, gradualmente essa estrutura torna-se aquilo em que as pessoas acreditam; primeiro envolvendo e depois substituindo o deus, até que ele morre.
Um exemplo contrário desse ciclo, é um pequeno deus chamado Angus, que tem apenas um crente, e nenhum adorador - seu crente simplesmente acredita que ele tem um amigo humano chamado Angus, o que o traz ao plano da existência - e Angus está mais bem de vida do que a maioria dos deuses mais famosos.
Basicamente, o ponto, é que pode-se adorar um sistema de crenças sem realmente acreditar que o deus realmente exista. No entanto, há outra camada que começa a fazer muito mais sentido à medida que você avança na série. No centro disso está um único conceito: Os deuses do Discworld não existem ATÉ que as pessoas acreditem neles.
Isso significa que se alguma pessoa aleatória no mundo acredita em uma divindade, não importa o que seja, e não importa o quão forte, essa divindade irá surgir devido a essa crença. Quanto mais fraca a crença, mais fraco o deus e menos facilmente ele pode se manifestar fisicamente, mas ainda existe enquanto a crença perseverar.
Inevitavelmente, isso leva á consequências inesperadas e divertidas. Por exemplo, as pessoas dizem meio brincando coisas como “Ele está fazendo uma oferenda ao deus da porcelana” como um eufemismo para vômito.
Então, no Discworld, em vez de “o deus da porcelana” você tem “Vometia”. Ela existe porque as pessoas continuam a se referir a ela dessa maneira. Mesmo se apenas uma pessoa dissesse isso, ela ainda existiria como o deus "dela".
Pratchett chama a maioria desses de “deuses domésticos” e fica muito claro sobre seu método de criação em Hogfather, quando o Hogfather desaparece e há um transbordamento de crenças no mundo. Isso começa a se manifestar em um número ridículo de deuses se formando com base em pequenas esperanças ou comentários, como “Bilious”, que é descrito como o “Oh Deus da ressaca” porque as pessoas de ressaca dizem muito “oh meu deus”. O mesmo vale para os deuses do futebol (orar para que seu time vença), “coisas perdidas” e várias outras orações improvisadas cotidianas que as pessoas oferecem sem saber porque esperam que algo aconteça (ou pare de acontecer).
Você também pode enfatizar a palavra “você.” Pois, uma pessoa pode realmente acreditar que existe um deus do futebol, mas esse é o deus dela, não o seu. Você nem precisa pensar que um deus do futebol seria possível, mas enquanto alguém no Discworld o fizer, ainda é um deus e existe enquanto a crença e as orações existirem.
Bem American Gods, não? Bem humano também, eu diria.
"Era muito bom sair falando em coerência, na harmonia dos números e na lógica que governava o universo, mas a questão pura e simples era que o Discworld atravessava o espaço na casca de uma tartaruga gigante e que os deuses tinham o hábito de aparecer na casa dos ateus quebrando as janelas."
O livro inteiro é baseado no absurdo, e a imaginação irônica do Pratchet deixa tudo ainda melhor. A aventura que acompanhamos em A Cor da Magia apesar de fazer referência desde Tolkien, Lovecraft, Howard, até Role Playing Games, mantém uma própria linha de originalidade que combina com toda a insanidade que é o mundo de Discworld.
Além dos personagens, que englobam desde a personificação da Morte, do Destino, uma entidade lovecraftiana Bel-Shamharoth, até arquétipos clássicos da fantasia totalmente renovados, como o Hrun o Bárbaro, ou mesmo Rincewind, o personagem principal do livro, um feiticeiro fracassado que só sabe um feitiço, que se instalou na cabeça dele e expulsou na marra todos os outros; o ponto forte do livro é a viagem que Rincewind e um turista (DuasFlor) fazem no Discworld, o que permite ao Pratchett exercitar livremente o barato que é o seu worldbuilding.
Por exemplo, quando após um encontro com Dríades totalmente diferentes das que estamos acostumados, e a apresentação de Hrun, e de sua espada mágica cuja única propriedade que a distingue das outras espadas convencionais é o ato de falar e cantar, o grupo adentra em uma área com um campo mágico altamente elevado, notado pela tendência que os arbustos tinham de andar e falar, e também por uma gigantesca montanha de ponta cabeça, a Wyrmberg, lar de dragões, porém, dragões translúcidos, que só existem se você acreditar neles.
O intenso campo mágico mostra diversos de seus efeitos bizarros, um deles é quando após a queda de um dos dragões, Rincewind e Duasflor rasgam um buraco no tecido da realidade e são sugados para dentro. Rincewind acorda dentro de um avião (algo que faz mais sentido em inglês, eles atravessam de plano, atravessam de plane, a mesma palavra para aviões) sob o controle de terroristas, e por fim cai em algum lugar do Mar Círculo (infelizmente para o Rincewind, cair torna-se uma coisa frequente para ele), o mar do disco, que literalmente tem uma beira, e a água derrama para o universo.
Esses são só alguns dos acontecimentos, é melhor eu deixar você mesmo ler e ir se surpreendendo.
Os mais de quarenta livros da série de Discworld são divididos entre vários "ciclos" diferentes, portanto a ordem de leitura é totalmente misturada, dando ao leitor a opção de escolher o núcleo que mais o agrada e começar por ali. E após passar pelos dois primeiros (A Cor da Magia e A Luz Fantástica), entendi o motivo de alguns leitores da série aconselharem a não começar por estes.
Esse é um dos poucos pontos negativos do livro, por isso preferi deixá-lo pro final. Apesar de possuir 152 páginas, ele não é uma leitura fluída, e a escolha narrativa de ir abordando pequenos arcos diferentes, e de deixar o final aberto para o próximo (é o único de toda a série a ser sequencial) não funcionou tão bem, uma amostra da inexperiência do autor, e de como a série deva tornar-se cada vez melhor com o tempo.
No geral A Cor da Magia tem um humor bastante peculiar, mas que se sustenta pelas diversas críticas e sátiras não só a outras obras de fantasia, como também da nossa sociedade real, recheado de sarcasmo, ideias inteligentes e caóticas já no primeiro livro da longa série.
Talvez demore para engatar, mas com certeza, se você gosta de Fantasia, é um livro que deve ser lido.