Queria Estar Lendo 27/12/2017
Resenha: Do que é feita uma garota
Do que é Feita Uma Garota, romance de estreia de Caitlin Moran, é a clássica narrativa sobre crescer e descobrir quem você é, com os anos 90 e o cenário musical underground da época como pano de fundo. Em um bairro operário do interior da Inglaterra, Johanna Morrigan constrói a pessoa que quer ser e ao longo da narrativa descobre tudo aquilo que é realmente necessário para se inventar. O livro foi cedido para o blog em parceria com a editora Companhia das Letras.
Johanna vive com a família em uma pequena casa em Wolverhampton. Aos quatorze anos ela está dividindo o quarto com o irmão mais velho, Krissi, e o irmão mais novo, Lupin, ajudando a mãe - sofrendo de depressão pós-parto - a cuidar dos gêmeos recém-nascidos e escutando sobre como tudo que o pai precisa para tirá-los daquela situação é sua grande chance na industria da música. Uma chance que eles esperam desde que ela era criança.
Mas Johanna é jovem, ingênua, ela acredita no pai e tenta sempre ver as coisas pelo lado positivo. Ela sempre como se o momento que vivem fosse uma grande sala de espera, de onde ela sairia antes dos 18 anos para uma Londres efervescente e rica, como o pai sempre prometera. Porém, quando a ruína da família parece ainda mais próxima do que a glória, ela decide que precisa agir.
Aos dezessete anos, ela já se tornou uma pessoa completamente diferente. Sob o pseudônimo de Dolly Wilde ela recebe por palavra escrita para fazer resenhas detonando bandas locais para uma revista de música de circulação nacional, está dormindo com caras a torto e a direito, com fama de beberrona e encrenqueira. Johanna achava que isso era exatamente quem ela queria ser, mas conforme vai crescendo e amadurecendo, ela percebe que pode ter construído Dolly com coisas que não são realmente parte de quem ela é.
"Porque eu ainda não havia aprendido a lição mais simples e importante de todas: o mundo é difícil e somos todos quebráveis. Então apenas seja gentil."
Do que é Feita uma Garota é um livro engraçado e relacionável para qualquer mulher que já foi adolescente, aquele período cheio de fases e altos e baixos, em que achamos que sabemos tudo que precisamos saber sobre o mundo e acreditamos cegamente que sabemos quem somos. E Caitlin Moran faz um excelente trabalho com a narrativa, entregando uma personagem que é em partes iguais ingenua e madura, tentando navegar nesse mundo estranho sem muita ajuda dos pais.
A história trata a descoberta da sexualidade, das responsabilidades, o primeiro amor, a família, e como tudo isso influencia tão categoricamente na pessoa que estamos nos tornando. Joahanna acreditava que montar Dolly seria coisa de uma única vez, mais ao longo do caminho percebe que reinventar-se é algo constante, especialmente na adolescencia.
Foi muito legal acompanhar a jornada dela, as tentativas e erros, e me ver muito na personagem. Johanna é uma personagem muito original, mas ao mesmo tempo ela é muito universal. Você não precisa ter feito exatamente as coisas que ela fez para se identificar, porque a identificação está na motivação dela: na confusão, no não saber, nas descobertas e nas dores.
"Auto-flagelar - o mundo já virá com facas na sua direção de toda forma. Você não precisa fazer isso primeiro."
A Caitlin Moran também tem uma voz bastante engraçada, o humor dela é leva - embora não poupe palavras de baixo calão - e ela fala com muita naturalidade de uma natureza um tanto quanto vulgar que todo mundo tem, mas que não admitimos nem para nós mesmos. Ler os devaneios da Johanna me fez lembrar dos meus próprios, e mais uma vez, não pelo conteúdo, mas pela forma e pela necessidade com a qual ela se perdia nele.
Talvez uma garota adolescente não consiga se enxergar nesse livro, e acho que essa não é realmente a intenção, uma vez que em partes ele parece muito com uma memoair, mas acho que as mulheres adultas podem olhar para ele e relembrar daqueles tempos confusos, de como fomos bobas achando que sabíamos tudo, só para quebrar a cara. Experiências que não se repetiriam na vida adulta, mas que formaram quem somos.
Outro ponto que gostei bastante é como o livro fala de forma tão sutil de feminismo. Ele não é didático, a posição da Johanna dificilmente seria de feminista - ela passa muito tempo tentando agradar os homens - mas a Caitlin Moran ainda assim discute o tema nas entrelinhas. Discute sobre feminismo quando Johanna enxerga o sexo como via de mão única de forma natural, discute feminismo quando Johanna aceita que é uma "baita vadia" por explorar sua sexualidade, quando discute os grandes sonhos da garota e a vergonha de sua origem, quando fala, mesmo que sem nunca usar essas palavras, do peso de ser a única garota da família.
"Algumas pessoas não são apenas pessoas, mas lugares - um mundo inteiro. As vezes você encontra alguém em quem poderia viver pelo resto da sua vida."
É algo tão sútil, porém tão impregnados nas entrelinhas. O tema está em todos as páginas, aperece por toda a história, mas se você não tem noção do que é feminismo, talvez nem perceba. E acho que isso é uma das coisas que mais gostei no livro, porque quando uma história está assim tão cheia de significado, é como ler um livro diferente cada vez que for reler ele.
Eu realmente não tenho mais palavras para descrever Do que é Feita Uma Garota, e acredito que todo mundo em busca de um bom contemporâneo vai se entreter com ele. As referências dos anos 90 estão ótimas e é realmente um exercícios pensar em como as coisas aconteciam antes da internet em larga escala.
"Então o que você faz quando você se construiu do zero, só para perceber que se fez com as peças erradas?"
A edição da Companhia das Letras tem uma diagramação simples, mas com capítulos bem separados, o que torna a leitura dinâmica, e eu amo essa capa meio fanzine dela, é tão referência anos 90 e riot grrrl que dói! O único porém fica a cargo da tradução, que no final do texto acabou perdendo um dos meus trechos preferidos: ao traduzirem "And, like all the quests, in the end, I did it all for a girl: me" para "e no fim fiz tudo por mim: por mim" o significado forte se perdeu um pouco.
site: http://www.queriaestarlendo.com.br/2017/12/resenha-do-que-e-feita-uma-garota.html