spoiler visualizarMurilo.Alan 23/12/2020
O preço da Justiça
A presente resenha crítica discorrerá sobre a obra “O preço da Justiça”, do autor iluminista Voltaire, distribuída no Brasil em 2006 pela editora Martins Fontes.
Motivado por um concurso da época que premiaria a melhor dissertação crítica a respeito da política criminal francesa, Voltaire apresentou seu texto “O preço da Justiça e da humanidade” para disputar o prêmio de cem luíses, consagrando-se vitorioso.
Cumpre observar, preliminarmente, que o filósofo tece seus apontamentos a respeito dos excessos punitivistas do século XVIII ao longo de vinte e quatro capítulos, em que elenca crimes e rechaça suas punições exageradas e arbitrárias.
Dentro dessa estrutura, o autor inicia sua obra criticando a lei em essência, pois, eivada de fraqueza humana, é frágil e volúvel. Voltaire é crítico inclusive quanto à necessidade fática da lei, tendo em vista que na Europa pós-medieval pune-se irrestritamente inocentes e culpados, consubstanciando a opressão dos mais fortes e poderosos contra os fracos.
Por conseguinte, o ensaísta francês debate a concepção de certas condutas como crime nos âmbitos patrimoniais, sociais e religiosos, bem como suas consequências.
Mormente, critica ferrenhamente o tratamento dado pela Justiça francesa aos crimes patrimoniais, mais especificamente furtos e roubos. Para o iluminista, essas condutas são punidas com penas parciais e desproporcionais, compreendendo inclusive penas capitais. Considerando o baixo potencial lesivo dessas condutas, Voltaire defende que há exagero nas punições, criticando o papel do soberano, que opta pela punição aos desviantes a atuar preventivamente, ajudando-os a melhorar de vida para não acabar na criminalidade.
A seguir, o pensador francês debate a contradição presente nas penas de morte para os crimes cometidos contra a vida. Analisando sob o prisma social, Voltaire apresenta sua visão consternada sobre os espetáculos públicos de barbárie que correspondem à aplicação das penas máximas, que embora saciem a sede dos populares, não possuem efetividade prática. Para o autor, a aplicação de uma pena de trabalhos forçados ou servidão perpétua contribuiria para a higidez do sistema, sendo muito mais frutífera que a simples execução.
Ademais, o deísta discorrerá sobre os sacrilégios – crimes cometidos contra a religião – que recebem as penas mais sangrentas, brutais e violentas. Convivendo com torturas, fogueiras e tenazes candentes, o cidadão francês é presa fácil para o caráter inquisitório do direito canônico em voga, que condenava todo e qualquer dito herege, sem chances de absolvição. A França assiste, então, a julgamentos hauridos de parcialidade: à guisa de exemplo, cita-se a defesa dos réus praticada pelos próprios jurados, ou ainda o pequeno número de juízes assaz para sentenciar um agente.
Ao ensejo da conclusão deste resumo, o escritor sustenta que as leis somente serão aceitáveis quando emanarem da nação. Para o ensaísta francês, quanto mais cruéis e desproporcionais forem as penas, maior será a criminalidade, provando como o sistema punitivista francês do século XVIII era ineficiente no combate ao crime.
O advento de “O preço da Justiça”, de Voltaire, remonta ao final do século XVIII, também chamado de Século das Luzes. Momento histórico de profunda transformação filosófica, os anos setecentistas foram perpassados pelo iluminismo: a razão humana como cerne das questões político-sociais, em contraposição ao passado canônico e transcendental.
Em virtude dessas considerações e imerso num cenário racionalista, o autor produz um texto profundamente crítico e vanguardista, em contraste com a naturalidade como a sociedade francesa recepcionava a vingança privada. Quando o filósofo atribui à razão humana o papel de discernimento entre o honesto e o desonesto, o justo e o injusto, responsabiliza aquele que pune com exagero e não mais ao universo metafísico.
Convém notar, outrossim, que o caráter consuetudinário do Direito à época proporcionava a perpetuação de um sistema instável, injusto e com ataques profundos aos direitos humanos: como bem assinala Voltaire, os julgamentos são parciais, ausentes de ampla defesa e culminam em penas desproporcionais e sanguinárias. Como se depreende, a presente dissertação corresponde a um lampejo de racionalidade em meio a uma Europa bêbada e bárbara, nas palavras do próprio autor.
A sobriedade perene do texto também é identificada nas análises sobre crimes patrimoniais. O ensaísta francês reconhece o abismo social entre ricos e pobres e não culpa ao desviante pelo ato de subtração. Segundo Voltaire, as punições para os crimes de roubo e furto configuram sanções contra a pobreza, pois o soberano não estava interessado em resolver os problemas sociais. De fato, era mais prático punir violentamente o agente do que sanar as dificuldades populares.
Anacronismos à parte, percebe-se o vanguardismo da dissertação quando o escritor iluminista rechaça a pena capital para homicidas, propondo como solução a servidão eterna e trabalhos forçados. Verdade seja, o homicídio sempre gerou maior impacto social e ensejou respostas violentas da população. Portanto, propor uma punição diferente da morte para este indivíduo já corresponde a um pioneirismo.
É sobremodo importante assinalar que a filosofia iluminista é ingente na opinião do autor sobre os crimes contra a religião. Com efeito, a onipresença da Igreja Católica no direito faz referência a um milênio de predominância na educação, economia e política europeias. Não por mero acaso, as punições para heresias e sacrilégios eram as mais violentas, fazendo-se uso de verdadeiros espetáculos públicos de carnificina para reforçar o poder eclesiástico. Entretanto, tais punições se mostravam ineficazes num ambiente pobre, cercado de pestes e misticismo. Voltaire argumenta que o volume de crimes contra a religião era diretamente proporcional à violência das punições, e à medida que a força punitiva católica diminuía, a prática de heresias reduzia paulatinamente.
Cumpre obtemperar, todavia, que o pioneirismo de Voltaire não foi capaz de superar o preconceito com a chamada sodomia. Embora o deísta critique as punições ao adultério, à bigamia e defenda uma inédita verificação médica para coibir injustiças na avaliação de possíveis estupros, o autor não se posiciona contrário às punições relativas à sodomia. Convém ponderar que a obra em geral apresenta a um relativo grau de desconstrução social muito além de seu tempo.
Em síntese, a obra “O preço da Justiça” é altamente recomendável para acadêmicos de Direito, haja vista ser um perfeito reflexo do momento histórico em que foi escrita. A dissertação veio a público no último quarto do século XVIII, assistindo à queda do absolutismo francês, a ascensão da burguesia, o liberalismo político e a noção de sociedade civil. Assim como a França vivia um momento de transição entre sistemas de governo, a exposição de Voltaire defende que somente um novo Código de Leis, cujo texto emanasse da nação, seria capaz de tolher as arbitrariedades punitivistas que assolavam a Europa.
Recomenda-se também o texto para o atual momento político e jurídico brasileiro. Em 2019, setores da sociedade brasileira bradam por punitivismo e endurecimento da legislação como solução para a crescente criminalidade. Entretanto, podemos encontrar numa obra datada de dois séculos, a necessidade de ponderação e razoabilidade no trato jurídico, pois as injustiças tendem a recair sobre os setores mais pobres e vulneráveis. Cai a lanço notar que num texto do século XVIII, Voltaire sugeriu cautela na análise de um flagrante delito, ressalvas na oitiva de testemunhas, devida observância de suspeição e impedimento de juízes, e criticou fortemente a legitimidade de provas obtidas via tortura. Curiosamente, dois séculos mais tarde, tais valores passam a conviver com ataques da sociedade, tornando a obra “O preço da Justiça” tão atual e necessária, assim como no seu tempo.
François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, nasceu em Paris, no dia 21 de novembro de 1694, terceiro filho de François Arouet, conselheiro de rei e antigo tabelião do Châtelet em Paris, e de Marie-Marguerite Daumart, ambos da alta e antiga burguesia. Perspicaz na defesa das liberdades civis, é um renomado autor iluminista, cujos pensamentos influenciaram fortemente na Revolução Francesa e Americana. Ao longo de sua vida, produziu cerca de setenta obras, sempre crítico aos privilégios nobiliárquicos e defensor da reforma social. Morreu em 30 de maio de 1778, em Paris.