Ronan 30/08/2020
Um país com personalidade?
Nos últimos tempos de pandemia e de isolamento social, minha necessidade de ler tornou-se maior, tenho predileção pelos grandes manuais de História, abrangentes, pretenciosos. A ficção, até mesmo como possibilidade de fuga da realidade, tão dura, é em mim superada por uma vontade de entendimento desta mesma realidade, no meu caso, a lente que escolho para esse entendimento é a da História.
O nome da obra, Brasil uma biografia, já chama atenção por si só, obviamente biografam-se pessoas e não países, porém, ao mesmo tempo, me perguntei se um país não é vivo, se ele não tem “personalidade” e “caráter” como uma pessoa, se ele não tem uma trajetória orgânica e marcada por escolhas, se ele não tem vários “vir a ser” como qualquer um de nós. Percebo que uma abordagem histórica sobre o nosso país, apoiando-se nas premissas dessas perguntas é que dá o tom da obra. Lembro-me de meu finado professor da Usp , István Jancsó, que lecionava Brasil colonial, dizer: “_ O Brasil é como uma garrafa que as pessoas vão preenchendo”, hoje entendo que essa ideia de Brasil como uma garrafa, diz respeito a um conceito pré-concebido, de uma nação concreta, que vem a priori, que sempre esteve lá, pairando acima da realidade, e que os historiadores vão preenchendo no seu ofício, contudo, ao final, tudo o que colocam lá(suas pesquisas, livros e artigos), vai adquirindo o formato da garrafa. As autoras brincam com isso com o nome do primeiro capítulo: Primeiro veio o nome depois uma terra chamada Brasil.
Pois bem, o país biografado não obedece à esse esquema de garrafa que vai sendo preenchida, as autoras enxergam a organicidade e a construção paulatina disso que convencionamos chamar de Brasil, problematizam, logo no início, a noção que temos de Brasil, como a de alguém que se olha no espelho mas vê outra pessoa, sim nossa autoimagem é enganosa e distorcida e isso justifica que estudemos nossa História. O período colonial é visto como um período formativo onde muitas das questões que vão ecoar até hoje tem seu início, a escravidão, o modelo econômico predatório e voltado para o exterior, a violência do estado etc. O século XIX como aquele em que a surge uma ideia de nação à qual se busca paulatina adesão, uma adesão condicionada ao reconhecimento e resignação de cada grupo à sua posição e função nesse “corpo”, depois vem o séc. XX, a República e com ela a cidadania, mas, como ser cidadão em meio à tanta desigualdade e violência? Todos somos cidadãos? E o mais complicado, ser cidadão não necessariamente implicava no exercício de direitos políticos e no aprendizado desse exercício. Em meio aos períodos autoritários a sociedade civil vai amadurecendo, as discussões sobre direitos vêm à baila e enfim chegamos ao período democrático. O posfácio trata do pós golpe em 2016, onde as autoras enxergam um refluxo daquele ambiente democrático que vinha vigorando, trazendo à tona contradições que se imaginavam superadas mas que estavam mais do que nunca latentes em nossa sociedade, fraturas ocultas sob a superfície, cujas raízes bebem no autoritarismo, no patrimonialismo, no clientelismo, no racismo, no fisiologismo da nossa política e na desigualdade cujas sementes foram lançadas lá atrás quando de Brasil só tínhamos o nome.
Uma crítica e um elogio, que caminham de mãos dadas e dialogam entre si. Ao escolherem uma abordagem de “biografia”, as autoras puderam dar um sobrevoo sobre um período histórico amplo, não se detiveram em temas ou personagens específicos, o que dá fluidez, agilidade e leveza à obra, difícil historiadores atingirem isso, o livro é gostoso de ler, é como se fosse possível enxergarmos a “personalidade” e o “caráter” do que chamamos de Brasil se formar e é nisso que reside a crítica. Talvez seja o viés da minha leitura mas, ao propor uma construção paulatina daquilo que chamamos de Brasil, fica uma nota de fundo ressoando, essa nota sugere um sentido em nossa história, uma ideia de “direção apesar dos percalços” (como a vida de pessoa que é biografada que tem começo, meio e fim e direção), aos olhos do historiador isso passível de crítica, uma vez que a História não tem sentido nem direção a priori, pelo menos desde que problematizamos a noção iluminista de uma história com sentido.
É uma obra gostosa, de fôlego, um método historiográfico rigoroso e sério, portanto um super manual, que foge aos clichês desses livros, que por vezes são enfadonhos e densos (lembrei de História do Brasil de Bóris Fausto, para mim insosso). Vale a pena fazer essa viagem introspectiva para tentarmos nos ver no espelho com mais nitidez enquanto brasileiros.