anicca 20/06/2021
"Os segredos envenenam dentro de você e o deixam doente"
Antes da resenha em si, acho importante ressaltar que o livro em questão apresenta gatilhos, os quais irei citar a seguir (pode funcionar como spoiler para quem não quiser quaisquer informações antes de iniciar a leitura). São eles: abuso sexual, aliciação de menor, stalking, pedofilia, manipulação e cenas gráficas.
Em linhas gerais, Celeste Price convida o leitor a mergulhar em sua história de amor às avessas. Jovem e bonita, adquiriu uma vida estável como professora, esposa de um policial bem-apessoado e dona de vários bens materiais. Mas a aparente perfeição esconde um pérfido segredo: Celeste é uma mulher de perfil sexual desviante, e ela pretende se envolver com um dos alunos de sua nova turma.
Dito isso, a narrativa foi inspirada por um caso ocorrido em 2004, no subúrbio de Tampa, na Flórida. Celeste, a protagonista, é, na verdade, Debra LaFave (antigo nome), uma ex-professora que se valeu da profissão para aliciar menores e cometer crimes de cunho sexual. Trata-se de uma pessoa inteiramente disfuncional e cujo comportamento pode ser deveras perturbador. A personagem é como uma espiral de escuridão, e, conhecê-la, uma descida sem retorno rumo ao que há de mais pútrido na alma humana.
"Passei a noite anterior ao meu primeiro dia de aula como professora em um ciclo excitado de masturbação silenciosa do meu lado da cama, sem conseguir dormir" é a frase de abertura do livro. A partir dela, o ritmo acresce à medida que a protagonista segue seus impulsos estapafúrdios.
No entanto, o modo como é guiado torna-o potencialmente perigoso, devido ao teor expositivo que acompanha as inúmeras cenas carnais. Há detalhes demais sobre como Celeste se insinua e cativa, quais artifícios usa para manipular as situações a seu favor, que sinais esclarecem as condições vulneráveis ou não do adolescente, as condutas que a mantém à margem da lei, e assim por diante. Vale lembrar que O colecionador serviu de inspiração antes que Natascha Kampusch fosse sequestrada e mantida em cárcere privado por 3.096 dias. As descrições literalmente facilitaram a construção do cativeiro da jovem. (Não significa que a obra em si seja letal ? caso fosse, todos os leitores/espectadores se veriam tentados a repetir os atos de Tampa, Laranja mecânica, Senhor das moscas e Fúria, do Stephen King ?, mas que, a partir do momento que vem a público, deixa de pertencer ao autor e é apropriada por terceiros e ressignificada.)
A temática já foi abordada sob outros vieses, como em Lolita e Minha sombria Vanessa, sendo que neste acompanhamos a construção do abuso na perspectiva da vítima (acredito até que são histórias complementares por ofertarem um horizonte mais amplo sobre o assunto). E é preciso que discutamos a respeito, incluindo ações para mitigar os ataques, mas exibir explicitamente não me parece a maneira mais apropriada. E, do ponto de vista narrativo, faz sentido que seja prolixo, visto que a história nos é apresentada pela criminosa, mas não deixei de questionar a necessidade dos detalhes. Precisava mesmo das dezenas de páginas voltadas para seus desejos predadores?
Ainda assim, o livro pode funcionar como um desvelador do senso comum, pois desmistifica três pontos centrais em relação ao abuso de menores: não é um crime cometido apenas por homens, o feminino não é o único alvo e, talvez o mais importante, esses criminosos não podem ser identificados a priori. Não existe um "perfil do abusador", não há aparência que os destaque das outras pessoas, pelo contrário, em geral são pessoas acima de quaisquer suspeitas, socialmente integradas e participativas.
Além disso, a história elucida traços do perfil pedófilo. Há passagens que demonstram o modus operandi¹, a seleção que precede o avanço², a manipulação³ e a mentalidade? envolvida. Celeste, em específico, continuamente objetifica sua vítima, alimenta fantasias absurdas, demonstra frieza em relação a tudo que não ela mesma, subjuga a quem puder com sua aparência e, em suma, é capaz de qualquer ato para se satisfazer. Definitivamente não é o que se espera de um professor, então o livro também faz pensar sobre a atenção que damos a quem cerca as crianças de nossa sociedade e como se comportam em torno delas. Aparência física não atesta bom caráter.
SPOILERS:
¹ "Meu parceiro ideal, eu sabia, incorporava uma junção muito específica de características que excluía a maior parte da população masculina do ensino médio. Surtos extremos de crescimento ou músculos pronunciados eram razão imediata para desclassificação. Eles também precisavam ter uma pele boa, ser mais magros e ter ou timidez ou a disciplina incomum necessária para guardar segredos" (p. 20); "eu havia decorado como chegar à casa de Jack; uma antiga lista online a divulgava como uma casa térrea de cinco quartos com teto abobadado. O preço de compra de alta classe média de alguns anos atrás era estimulante: eu torcia por pais que trabalhassem fora e não tivessem tempo para decodificar mentiras ou fazer microgerenciamento na criação dos filhos. Um mapa na internet registrava uma distância de 8,5 quilômetros. Antes de dar a partida no carro, certifiquei-me de zerar o odômetro para confirmar a distância alegada. Qualquer dado ou estatística relacionados a Jake já pareciam algum progresso" (p. 48); "por enquanto, minha juventude e aparência facilitam tudo isso [continuar os envolvimentos sob o véu da falsa identidade]. Procuro não pensar nos anos frios à frente, quando o tempo aos poucos roubará minha juventude e meu corpo começará suas mudanças físicas. Terei de me limitar a certos tipos: meninos órfãos de mãe ou aqueles tão sexualmente vorazes que não se importarão com meu corpo gasto. Por fim, terei de encontrar um emprego com salário melhor numa área urbana com fugitivos ansiosos por dinheiro que poderei pagar por uma noite. Mas isto será daqui a muitos anos; há muito com que me divertir entre o futuro e agora" (p. 314).
² "Meninos voluntariosos estavam fora da minha lista. Seriam eles os mais dispostos a abrir o bico" (p. 23); "olhava na minha direção, mas não abertamente. De vez em quando, um amigo cochichava alguma coisa para ele, fazia um comentário e ele virava a cabeça, assentia ou ria. Mas depois voltava a olhar timidamente para a frente. Havia uma educação hesitante em seus movimentos" (p. 23); "ele estava exatamente naquele último ponto de ligação com a androginia que a puberdade lhe permitia: inegavelmente masculino, mas não homem. Eu adorava a suavidade de seus braços e pernas desajeitados, a plasticidade de seus membros, a sua constituição física ainda livre de gordura e músculos. O corpo ainda sem uma modelagem fixa" (p. 35).
³ "Eu podia apertar sutilmente meu corpo contra o deles, explodir seus circuitos com a confusão de risos alegres e conversa fiada canalizada para seus ouvidos por meus lábios úmidos. É claro que antes eu falaria, viraria a cara de lado com um olhar indolente, sugerindo que não estava acontecendo nada, que não tinha percebido meu osso pélvico roçando no calor ereto dentro de suas calças de smoking alugado" (p. 11); "eu queria que ele sentisse que não estava simplesmente guardando meu segredo ? que eu também guardava o dele" (p. 113).
? "Eu sorri, pensando no amante que ele se tornaria e em todas as coisas que ele experimentaria comigo pela primeira vez. Seria o parâmetro sexual para toda sua vida: Jack passaria o resto de seus dias tentando, sem sucesso, reviver a experiência de receber tudo em uma época em que ele não sabia nada" (p. 118); "não pude deixar de sentir certa irritação com a esperteza da reação de Jack. Sugeria uma capacidade de ludibriar que eu não queria particularmente que ele tivesse" (p. 215); "normalmente, eu teria rejeitado qualquer aluno que tomasse a iniciativa; era um sinal de insolência e impulsividade, características que facilmente poderiam levar a sermos apanhados. Além disso, a dinâmica de poder estaria a favor dele se ele tomasse a iniciativa" (p. 258); "admitir que eu não o obrigara certamente fazia Jack contemplar sua própria culpa em toda a situação" (p. 310).