jota 09/11/2023MUITO BOM: com que touca eu vou ao chá que você me convidou...É bem possível que quem, como eu, tenha lido primeiro Norte e Sul (1855), considerada por muitos a obra-prima da inglesa Elizabeth Gaskell (1810-1865), e depois Cranford (1853), possa pensar que a autora tenha dado, em apenas dois anos, um salto enorme de qualidade e de preocupação social em sua escrita. Porque naquele livro, que tinha como pano de fundo a Revolução Industrial, ela procurava contracenar personagens de diferentes estratos sociais num meio social, político e econômico que passava então por profundas modificações.
Cranford também é muito bem escrito (elegantemente escrito, eu poderia dizer) e capaz de nos interessar grande parte do tempo, mas Gaskell, longe das grandes questões inglesas de seu tempo (porque o livro tem traços de autoficção), dos problemas das grandes aglomerações urbanas do país, se concentrou nas vidas e preocupações dos habitantes de um vilarejo do interior, notadamente de suas mulheres. Na fictícia Cranford o assunto mais importante do dia (quer dizer, de um capítulo) podia ser a touca que uma personagem estava usando ou o pão com manteiga que uma senhora podia oferecer no chá da tarde para suas convidadas, um luxo entre elas então.
Essas mulheres eram em grande parte viúvas ou solteironas (uma delas registra que um homem “é um estorvo em uma casa!”) que se esforçavam para manter as aparências, parecer bem de vida, e apesar dos escassos recursos financeiros com que contavam, desejavam viver com dignidade. O que muitas vezes as levavam a praticar a solidariedade entre si, umas ajudando as outras em diversas ocasiões, sempre com muita discrição se possível. Isso não impedia, no entanto, que também fizessem muita fofoca, menosprezassem e tentassem, com sutileza, excluir de seu círculo pessoas que consideravam indesejadas por conta disso ou daquilo.
Tudo é narrado por Miss Mary Smith (que alguns dizem ser reflexo da própria Gaskell), uma moça que frequentemente visitava o vilarejo para estar com suas amigas. Especialmente com Miss Matty, uma personagem singular que, entre outras coisas ia dormir cedo porque desse modo a noite (com seus inúmeros perigos, fantasmas, malfeitores e bandidos) passava mais depressa... Assim, Cranford é, sobretudo, um livro bem humorado, muitas vezes cândido e engraçado, comovente num ou noutro capítulo, mas também com muita ironia despejada pela autora em suas observações cotidianas das pessoas e do lugar.
Mais que um romance o volume parece ser uma reunião de histórias sobre os acontecimentos e personagens do vilarejo. Como o desaparecimento de um irmão na Índia, o romance do médico local com uma aristocrata, um desastre financeiro advindo da quebra de um banco, a morte de um velho amigo, paixão na juventude etc. Tanto que foi publicado em capítulos numa revista de Charles Dickens. Que também é lembrado aqui, através de seu livro As Aventuras do Sr. Pickwick, elogiado por um personagem. Mas outra personagem, autoritária, achava seus livros inferiores aos de Samuel Johnson, autor de A História de Rasselas, Príncipe da Abissínia. E por aí vai, tem de tudo um pouco em Cranford. Desse modo, é fácil apreciar os livros de Elizabeth Gaskell e pode ser que minha próxima leitura dela seja Mary Barton (1848).
Lido entre 05 e 08 de novembro de 2023.